QUIZILA DO ÓDIO [Texto para o Mural: Vidas Negras Importam]

Muita dor marcou a história de negros e negras sequestrados de África para a América, sobretudo diante de todas as atrocidades possíveis a quais estes e estas foram submetidos. Em contrapartida, de cada experiência de dor surgiram respostas de resistência que tornaram possíveis a sobrevivência e a existência dos povos negros nas atualidades, senão pela presença física, pelo menos através da memória de suas histórias, pensando nos povos que escolheram a morte a uma vida de opressão – também um ato de resistência. E é da necessidade de resistir que se erguem os quilombos de afeto por entre a gente: uma promessa de que, através da criação e/ou fortalecimento de laços entre a população negra, se alcance a perpetuação de uma história e uma herança cultural e, sobretudo, espaços físicos e/ou mentais de cura.
         Partindo do conhecimento sobre quilombo por si mesmo enquanto um lugar de encontro, (re)união e acolhimento de corpos negros em situação de fuga, prática histórica e revolucionária de resistência, penso que quilombos afetivos funcionam como um espaço menos físico e mais inter-pessoal onde a resistência se faz entre os laços e conexões afetivas que perpassam as vidas negras – uma vivência em rede.
Os quilombos são uma das maiores marcas da luta pela vida negra nas terras brasileiras na época da escravidão. Inúmeros, escondidos e poderosos: Quilombo dos Palmares, em Alagoas; nas matas do Urubu, na Bahia; Quilombo de Jabaquara, em Santos; Quilombo dos Garimpeiros, em Minas Gerais... dos mais famosos aos menos conhecidos, temos nomes históricos: Zumbi e Dandara dos Palmares, Zeferina e Manuel Congo.
É bebendo das águas quilombolas de força e luta que o aquilombamento afetivo se mostra como uma importante estratégia de sobrevivência e re-existência da população negra nos “n” espaços possíveis de ameaça que vêm surgindo nestes tempos cada vez mais tempestuosos que atravessam o Brasil.
O afeto sempre fez olho-torto ao encarar uma pessoa negra. Sabemos das grandes barreiras erguidas pela masculinidade tóxica, da solidão afetiva da mulher preta e todos os estereótipos e preconceitos que afastam a negritude das possibilidades afetivas. Ciente disso é que a criação de laços se faz ainda mais importante. Laços que mirem o princípio ubuntu: “eu sou o que nós somos”. É preciso enxergar-se enquanto pessoa negra, cultivando em si amores próprios por sua identidade, e, a partir daí, enxergar no outro e outra as questões que nos unem. Frases como “ninguém solta a mão de ninguém” seriam muito mais belas e emocionantes se a repetição histórica não nos mostrasse que as nossas mãos negras quase sempre são as primeiras a serem largadas quando a situação aperta – e somos os primeiros alvos.
Existem dois caminhos para promoverem a aproximação de corpos e mentes negras: o amor e a dor. Por grandes momentos, a dor vem sendo o maior fator de união. Revolucionariamente, unir-se através do amor é além de resignificar as estratégias de resistência, uma perfeita aversão ao ódio que assombra nossos dias. O amor preto é a quizila do ódio.
Os tempos pedem leveza. Fortalecer as alianças é essencial para garantir amparo e um espaço capaz de promover cura. Afinal, após constantes ameaças que nos perseguem e não cansam de alvejar nossos corpos e enlouquecer nossas mentes, é no apoio de outro preto ou outra preta – quem compartilha dessas mesmas vivências – que podemos encontrar o conforto, o repouso e a força que encarnamos para nos adaptarmos e movermos adiante nossas lutas.

Pablo Emmanuel Brito dos Santos

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os Neogramáticos

Ari Sacramento: um intelectual-Sankofa

Sociolinguística