AS TRAVESSIAS DAS MEMÓRIAS [Texto para o Mural: Vidas Negras Importam]

As metragens

O longa-metragem Café com Canela, dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa, dois ufrbaianos (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB), se constrói no chão de São Felix e Cachoeira, no Recôncavo da Bahia. O filme é uma das mais expoentes produções do cinema brasileiro na contemporaneidade, se configurando como uma importante peça para a representatividade das histórias, vivências e das diferentes subjetividades capturadas. Tal narrativa se
conecta com o curta-metragem Travessia – dirigido por Safira Moreira, BA –, que, com meros 5 (cinco) minutos de duração, insere-nos na retomada de memórias ceifadas e apagadas pelo processo histórico de escravização das mulheres e famílias negras. As duas narrativas fazem a retomada da memória de maneira a preservar as histórias de vidas negras, na tentativa de superação dos traumas e reescrita dos protagonismos de tais trajetórias. Ambas produções audiovisuais têm como temas centrais a perda, o luto e a dor, sentimentos que direcionam-nos a mergulhar nas narrativas, desenhando a realidade da forma desvairante em que ela se constrói. Além disso, as duas
metragens utilizam a memória para superar e ressignificar o passado, auxiliando no processo de cura dos sujeitos descritos. Café tem as personagens Margarida (Valdinéia Soriano) e Violeta (Aline Brune), duas mulheres potentes que se reencontram para materializar os desvios e os desencontros: Margarida, que vive em São Felix, perdeu seu filho e se isola da cidade, Violeta, morando em
Cachoeira, luta diariamente para colocar a comida na mesa, enquanto cuida de sua mãe doente (Dona Dalva Damiana). Já em Travessia, a câmera permite que observemos, logo de início, a fotografia impressa de uma mulher negra segurando uma criança branca (apesar de parecer que a mulher nos olha de dentro pra fora da tela); no verso da fotografia encontramos, escrito à mão, “babá”, única lembrança que a diretora, Safira, tem de sua bisavó.

A ancestralidade

Café com canela se sustenta em diversas sensibilidades que auxiliam-nos no processo de construção e reedição dos afetos: o alimento é um instrumento revolucionário de amor. Violeta faz coxinhas como fonte de renda para sua família, com uma receita passada de geração a geração; Margarida, vivenciando a amargura e dureza da dor, toma um café requentado todos os dias. Violeta traz
à cena um elemento que une novamente as duas realidades: a canela é inserida na história como uma simbologia de cura; o café e a canela juntos representam a parceria e uma nova construção de si, proporcionada pela atenção mútua entre elas. É poético pensar que a canela, como uma planta medicinal, proporciona ao corpo feminino um cuidado que diz respeito à limpeza, amor e respeito de si. Travessia nos oportuniza compreender as diversas formas de apagamento que mulheres e famílias negras tiveram. A fotografia aqui se faz como um privilégio de famílias brancas e elitistas e lembra-nos que a vedação ao acesso a dispositivos que preservem a memória de narrativas negras, como a fotografia, também é um modo estruturante de esquecimento. O monopólio da tecnologia da fotografia, assim como a posse da herança imaterial do nome dos escravizados – prática recorrente dos colonizadores que renomeavam as pessoas, com nomes preferencialmente católicos, e as separavam para não terem contato com sua história, comunidade e família –, por muito tempo estava na mão de uma elite eurocêntrica que privava os sujeitos do acesso ao passado, constituindo, inclusive, um processo que se repetiu entre as gerações. Contudo, o curta não se concentra nessas formas históricas de apagamento, dando-nos a sensação de respiro: da ancestralidade, a partir da
bisavó de Safira, aos dias atuais, a narrativa se compromete a colocar os novos sujeitos nos espaços de protagonistas, quebrando com a áurea de angústia e tristeza que persegue as produções sobre pessoas negras no geral. Café com Canela e Travessia são duas produções que acessam o passado
de maneira a reescrever o presente e, apesar do tema principal dos dois filmes não ser o racismo, eles se configuram como produções antirracistas, de afirmação e empoderamento do povo negro, possibilitando aos sujeitos a construção das suas próprias histórias, não negando os espaços na modernidade. Os filmes contribuem para o cinema nacional na medida em que reelaboram o
imaginário cinematográfico acerca de vidas negras, pois as mostram de forma heterogênea e diversa. São filmes que comunicam as encruzilhadas afetuosas encontradas nos processos de cura e nas reedições da elaboração de si.

Cely Pereira

Referências
Café com Canela. Ary Rosa e Glenda Nicácio. Bahia: Rosza Filmes Produções, 2018.

GOMES, Juliano. Mas tinha que respirar. Disponível em: <http://revistacinetica.com.br/nova/mas-tinha-que-respirar/>. Acesso em: 16 nov 2018.

RIBEIRO, Anthony. O espaço em branco da memória. Disponível em: <http://www.janeladecinema.com.br/2017/11/10/o-espaco-em-branco-da- memoria-travessia-safira-moreira-2016/> . Acesso em 16 nov 2018.

Travessia. Safira Moreira. Rio de Janeiro, 2017. 16 mm. Disponível em: <https://vimeo.com/236284204> . Acesso em: 15 nov 2018.

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