QUE BOM QUE EU TE ENCONTREI AQUI! [Texto para o Mural "Corpos dissidentes: literatura, dança e teatro"]
QUE BOM QUE EU TE ENCONTREI AQUI!
Ingrid Limaverde
Escrevo a partir de um silêncio descolado. Silêncio com horas marcadas no ano de 2012 e nos seguintes. Ele que, vagarosamente, chegou em minha epiderme em um dia de segunda-feira do mês de janeiro e chega todos os dias em que me vejo de fora. E ontem, quando chegou, antes que sozinho escapulisse completamente de meu corpo, chorei. As águas salgadas de dentro, as águas salgadas de silêncio, me trouxeram uma certeza. Ao ter em minhas mãos um livro que mais parecia ter sido escrito por outras tantas, tive a certeza de que o meu amor por um corpo, por uma existência quase-semelhante, de um prazer em comum, não estava e nunca poderia estar guardado. Quando me vi, escrita em linhas que contavam a história de tantas outras que amam outras e aquelas e estas, senti meu corpo parecer presente, vivo. Eu existo! Este amor existe! Está aqui revelado de tantas maneiras diferentes, exposto em suas complexidades e desvios. Esse amor potente.
Lembrei que era por isso que sempre dizem que o amor entre duas mulheres é revolucionário. E nós precisamos nos ver assim, corpóreas, com formas e cheiros misturados e diferentes à mostra. Sem os dedos que erotizam. Longe de lábios que invadem. Vistas inteiras, além de nossas peles que se esfregam e também por elas. Percebi o quanto era bonito ter esse amor que, muitas vezes, me fizeram empurrar para debaixo do travesseiro, saltando aos meus olhos através de palavras que se multiplicaram e circulam pelos olhos de muita gente. É bonito pensar que esse amor está sendo lido, talvez agora, por alguém que talvez não soubesse ao certo sobre ele, ou até mesmo por alguém que esperava ansiosamente por esse encontro.
O livro sobre o qual falo é Amora, uma coletânea de contos sobre experiências de amor e de existência trocadas e vividas por mulheres escrita por Natália Borges Polesso. Pensar esse livro é pensar na construção de um espaço de elaboração de narrativas para além das que estão lá contadas. É compreender o que a literatura pode movimentar em termos de representatividade lésbica e como a literatura deve ser considerada um instrumento que mobiliza afetos e rompimentos. Através desses discursos fortalecidos por Amora, se torna possível tencionar um imaginário que nos silencia e nos invade.
Além disso, essas narrativas engatilham uma série de desconstruções com relação aos corpos das mulheres lésbicas, principalmente quando trazem a complexidade de nossas vivências. São narrativas que nos humanizam e nos garantem uma existência constantemente negada. É exatamente sobre isso que falo quando afirmo a necessidade de existirmos longe de estereótipos que nos erotizam, nos reduzem e tentam nos apagar.
No país que mata uma pessoa LGBTQI a cada 24 horas, esse livro se torna um marcador de imortalidade. Nossas vidas estão sendo reivindicadas nessas histórias escritas, nós, mulheres lésbicas, estamos vivas, invioladas, existindo em cada conto. Ele traz um impulso aos nossos corpos expostos a tantos processos de violência. Isso é compreender, como traz Deleuze (1993, p. 5) em "La Litérature et la Vie", a literatura como tarefa de saúde.
É por isso que tenho em cada dia que vivo entendido o poder dos olhares e das coisas que aparecem. Precisamos sempre traçar as silhuetas que queremos do que será visto, para que isso não seja feito longe de nós. Por quem ainda insiste em nos dizer quem somos. Por esses que nos fecham em quatro paredes ou nos retiram delas para um gozo áspero e farpado. Tudo o que nos mostra deve ser nosso. Um livro, um filme sobre mulheres que se amam ou um casal de mulheres se beijando em um ponto de ônibus nos leva ao acolhimento de um lugar no mundo. Esse reconhecimento nos faz sentir como se algo dentro da gente se acomodasse afetuosamente. É como se cada momento que dividimos esse espaço fosse um suspiro de alívio. Que bom que eu te encontrei aqui!
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. La Litérature et la Vie. In:______. Critique et Clinique, Paris: Minuit., 1993. p. 11-17.
POLESSO, Natália Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015.
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