Literatura surda e a construção da identidade surda
Por Cristovão Mascarenhas
A noção de literatura surda começou a circular em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, principalmente onde havia escola de surdos. Em 1864, foi fundada a Universidade Gallaudete, em Washington. E, a partir daí, os sujeitos surdos e acadêmicos da área foram formando um conceito de literatura surda, transmitindo-o para a comunidade surda local e integrando-o à cultura e construção da identidade surda desse povo. Nesse sentido, o objetivo deste texto é refletir, ainda que de forma superficial, a história da literatura surda, observando as manifestações das produções culturais dos surdos em obras que são contadas em Libras.
A literatura surda pode ser compreendida como pertencente ao que se identifica como cultura surda. Segundo Wrigley (1996), apud Mourão (2011), o traço significante que define a cultura surda é o uso de uma língua de sinais, ou seja, uma língua compartilhada em uma comunidade de pessoas surdas, sendo que essa cultura utiliza predominantemente a experiência visual, e como qualquer outra, tem seus costumes, hábitos e ideias compartilhadas desenvolvidas pela própria comunidade, não configurando, assim, uma cultura adaptada dos ouvintes.
Entendemos, a partir de Hall (2007), apud Mourão (2011), que a cultura tem a ver com a produção e intercâmbio de significados entre os membros de uma comunidade. Assim, dizer que duas pessoas pertencem a mesma cultura é afirmar que ambas interpretam o mundo de maneira semelhante. Nesse sentido, Flores e Karnopp (2006) afirmam que o processo de construção de significados resulta também no modo como as pessoas usam a língua, pois os significados não estariam presos unicamente ao texto, mas também as pessoas no ato de ler, escrever e interagir. Assim, os valores de uma comunidade surda e suas ricas experiências linguísticas se expressam, também, na própria língua do surdo, pois os sentidos, para serem construídos, apoiam-se em momentos históricos e culturais vividos pelo indivíduo. Partindo desse pressuposto, entendemos que as comunidades surdas foram formadas em contextos culturais específicos e seus conhecimentos e significados refletem nos gêneros literários por eles produzidos.
Segundo Mourão (2011), não é fácil definir o que é literatura surda, pois, como não há uma definição ou uma única conceituação para a literatura em geral, também não o há para a literatura surda. São várias respostas e, muitas vezes, essas respostas não se aproximam de uma grande verdade, de uma verdade absoluta, pois, para cada tempo, para cada grupo social haverá uma definição própria. A expressão “literatura surda” é utilizada para histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que entende a surdez como presença de algo e não como falta que possibilita outras representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente (KARNOPP, 2006). Mas não é objetivo central desse texto tentar chegar a um conceito de literatura surda, mas sim mostrar que existem diversas manifestações literárias sendo produzidas por essa comunidade.
Existem várias obras surdas nas comunidades surdas, algumas conhecidas apenas pela própria comunidade, outras conhecidas mundialmente. A comunidade surda reúne grandes poetas, contadores de histórias, escritores, atores e artistas surdos. No caso do Brasil, podemos citar: Nelson Pimenta (RJ), Silas Queiróz (RJ), Sandro Pereira (SP), Rosani Suzin (PR), Heloir Montanher (PR), Celson Badin (SP), Paulo André Bulhões (RJ), Jadson Rodrigues (PE), Fernanda Machado (RJ), Alexandre Luiz (RJ), Rosana Grasse (RJ), Cleber Coutor (PA) e entre outros surdos brasileiros.
A comunidade surda é bilíngue e convive no meio social com ouvintes e surdos. Segundo Strobel (2008, p. 57), apud Mourão (2011, p.53):
Muitos escritores e poetas surdos também registram suas expressões literárias em língua portuguesa, como testemunhos compartilhados de suas identidades culturais e, assim, a cultura surda passou a ganhar espaço literário com lançamentos de livros e artigos com temas nunca antes imaginados.
Existem livros de literatura clássica traduzidos da língua portuguesa para a língua de sinais (disponíveis em DVD). Entre alguns livros podemos citar: Cinderela Surda, Rapunzel Surda, Patinho Surdo e Adão e Eva, que são adaptações dos clássicos da literatura. Na apresentação do texto de Cinderela Surda, os autores destacam que não sabem quem contou a história pela primeira vez, ela foi sendo recontada entre os surdos até que estes acharam importante divulgar esse trabalho. Muitas pessoas conhecem a história clássica da Cinderela, porém essa outra versão tem como objetivo recontar essa história por meio de uma outra cultura: a cultura surda. Assim, o livro é construído a partir de uma experiência visual, com imagens, com o texto reescrito dentro da cultura e identidade surda e da escrita de sinais, conhecida também como signwriting.
Em todos esses livros, os personagens principais são surdos e o enredo da história pode sofrer algumas alterações. Os autores desses livros tomam como base os clássicos da literatura mundial, reconhecem nessas histórias valores culturais e realizam adaptação para a cultura surda, de forma que o discurso traz representações sobre os surdos. Além dessas produções, a editora Arara Azul disponibiliza a coleção “Clássicos da Literatura em CD-R em Libras/Português”, em que uma equipe de tradutores faz a tradução da língua portuguesa para a Libras.
Tais livros têm sido usados por toda comunidade surda, principalmente em escolas de surdos. Não é uma literatura restrita as pessoas surdas, ao contrário, é também uma literatura para os sujeitos ouvintes e alunos das escolas comuns, a fim de que outras comunidades possam aprender a língua de sinais e também possam reconhecer e respeitar a cultura surda. Além desses textos, existe também uma rica produção de poemas, fábulas e contos em Libras filmados e registrados em DVD.
Assim, podemos afirmar que é inegável a relevância educacional e social das produções culturais dos surdos, em especial a literária. As comunidades surdas, como vimos, têm como principal marcador identitário o uso da língua de sinais. Nesse sentido, compartilhar a língua de sinais possibilita, também, a produção de narrativas e poemas que vão passando de geração a geração. Essas considerações são importantes para entendermos a produção literária em sinais. Percebe-se, com essa produção, que os surdos contadores de histórias buscam o caminho da autorrepresentação na luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades, através da legitimidade de sua língua.
Referências
FLÔRES, Onici; KARNOPP, Lodenir; GEDRAT, Dóris. Teorias do texto e do discurso. Canoas: Ed.ULBRA, 2006.
MOURÃO, Claúdio. Literatura Surda: produções culturais de surdos em Línguas de Sinais. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: UFRGS/Programa de pós-graduação em Educação, 2011.
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