Literatura infantil e juvenil: considerações da narrativa nos games

Antonio Caetano

As discussões acerca da literatura, do que torna um texto literário e da suposta qualidade desse texto são velhas conhecidas dos estudos literários e vêm sendo repetidamente trazidas à tona. As análises, as teorias e as classificações que envolvem textos literários, gêneros literários e narrativas sempre se encontraram em constante mudança, principalmente na contemporaneidade. Sabemos, por exemplo, que a imagem comumente espalhada e enraizada na mente das pessoas sobre a literatura está intimamente ligada a livros antigos, estantes imponentes encontradas em bibliotecas e universidades conceituadas, bem como a longos poemas e aos romances clássicos atemporais. Entretanto, nunca se entrou em um consenso em relação ao que seria o verdadeiro conceito de literatura; essa dificuldade, portanto, persiste em outras áreas. Concordo com Derrida quando ele diz:




Não há essência assegurada ou existência da literatura. Se você analisa todos os elementos de um trabalho literário, nunca irá se deparar com a literatura em si, só com traços os quais ela toma emprestado e compartilha, também encontrados em outros lugares, em outros textos, seja no que concerne a linguagem, os significados ou os referentes (“subjetivo” ou “objetivo”) (DERRIDA, 1992, p. 73, tradução nossa).



Se não existe um conceito único e exato de literatura expresso em um consenso, pode-se entender que esta possui espaço suficiente para se expandir, transmutar e se estender para diversas mídias. Squire (2017) traz um conceito de narrativa “como uma cadeia de signos, com sentidos sociais, culturais e/ou históricos particulares e não gerais [...] Nesta definição a narrativa pode operar em várias mídias, inclusive em imagens imóveis”.


Um dos ramos onde se pode constatar a presença do contexto literário em novas mídias, principalmente o infantil e juvenil, é o da narrativa contida nos video games, tão consumidos na atualidade. O cenário dos games possui grande apelo entre as crianças, os adolescentes e os jovens adultos, o que lhe garante a situação propícia para a dispersão das narrativas de literatura infantil e juvenil. Certamente, a mera proposta da inserção dessas narrativas de games como merecedoras de estar em pé de igualdade com qualquer outro texto verbal, e, portanto, ser considerada como literatura, abre caminho tanto para novos conceitos e novas subjetividades dos textos literários, quanto para a crítica que nega o potencial literário de tais mídias. Mesmo a literatura infantil e juvenil, difundida através das vias mais convencionais (livros, poemas, canções, etc.), ainda luta para ser afirmada com mais respeito em um patamar no cenário canônico da academia.


Mas como se dá a literatura dentro do universo dos games? Existem diversas especificidades em diferentes narrativas, especialmente quando se dão em múltiplas mídias (teatro, cinema, quadrinhos, romance, séries de TV, entre outros), e com os games não seria diferente. Muitas das características na sua forma de contar histórias possuem familiaridades com o cinema e com os quadrinhos, embora possuam especificidades, tais como: as decisões que devem ser tomadas (muitas vezes múltiplas) com o intuito de promover a continuidade da história, que dependem de cada jogador, e podem modificar o curso da narrativa a depender dos caminhos selecionados, e a utilização dos vários dispositivos oferecido pelo hardware, e que concede ao jogador uma gama diversa de performances, resultando assim em histórias diferentes a depender das decisões e habilidades de quem joga. Salvo as peculiaridades nas narrativas de games, as formas narrativas, no geral, estão fortemente conectadas a outras mídias através da construção da história narrada e seu contexto.


Com o passar do tempo, desde quando os primeiros jogos eletrônicos passaram a ser difundidos, a narrativa, responsável pela construção do imaginário do jogo com o qual o jogador interage, começou a tomar mais forma e passou a ser menos unidimensional, acompanhando — não obrigatoriamente e não necessariamente na mesma velocidade a evolução da tecnologia investida nos jogos. Partiu-se então, de uma realidade em que o jogador interagia apenas com imagens de pontos pixelizados, levado a crer que se tratavam de naves, ou monstros, para uma realidade em que a valorização da narrativa ocorre “juntamente com o aparecimento de jogos que propunham tramas mais complexas, personagens mais ricos e cenários impossíveis para as gerações tecnológicas anteriores” (PINHEIRO e BRANCO, 2006).


Entretanto, não é correto afirmar que o gráfico de um jogo em high definition, resultado de grandes investimentos tecnológicos, seja garantia de que ele possui uma história narrada que seja, necessariamente, densa e profunda. Porém, quanto mais coerente, ramificado e bem engendrado for o roteiro de um jogo, maiores as chances de o jogador ser lançado para a situação de suspensão de descrença, ou seja, de aceitar e acreditar que o mundo ficcional do jogo, mesmo que por pouco tempo, existe de fato. Pois, como dizem Pinheiro e Branco (2006) “A narrativa é a dimensão que sobredetermina todas as outras”. Existem, evidentemente, jogos que não necessitam diretamente de uma narrativa por trás; mas é fato que essa, quando utilizada, se revela importante no encadeamento da construção da história de um game dependendo de qual seja o seu objetivo , e, em decorrência do processo, essa narrativa acaba mudando e evoluindo. Como diz Peter Hunt (2010) “A consequência óbvia dessas tendências é que o conceito de ‘narrativa’ é estendido”, e, por conta dessas mudanças temos de entender que:



estamos em uma fase de transição para o pensamento hipermídia generalizado, e temos de aceitar que os MUDS (Mult-user Domain, um RPG com vários jogadores simultâneos) que possibilitam a autoria múltipla; os textos anotados, os sites e revistas eletrônicas que exploram narrativas novas ou antigas; todos agora fazem parte da narrativa. O que anteriormente se consideravam itens externos ou alheios (antecedentes do argumento, biografia dos atores, brinquedos de recortar, adaptações) tornaram-se parte da “narrativa” Os jogos de computador envolvem comumente milhares de jogadores que levam vidas virtuais em paisagens virtuais (HUNT, 2010, p. 281).


Uma questão importante que envolve as narrativas em games pode ser abordada. Como, de que forma se dão as estratégias de condução dos tipos textuais (verbais e não verbais) em um game no decorrer de uma história?  Em virtude disso, há de se dar valor à literatura existente em jogos eletrônicos, afinal, eles reorientam a condução e as abstrações de cada um dos tipos textuais a todo momento, pois um tipo suplementa o outro, conferindo-lhe uma complexidade que não é partilhada pelas narrativas em outras mídias.



REFERÊNCIAS

DERRIDA, Jacques. This strange institution called literature: An interview with Jacques Derrida. In.:______. Acts of literature. Londres: Ed. Routledge, 1992. p. 73.

 

HUNT, Peter. A literatura infantil e as novas mídias. In:______. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 273.  

 

PINHEIRO, Cristiano Max; BRANCO, Marsal Alves. Uma tipologia dos games. Revista Famecos, Porto Alegre, n°15, p. 33-39, 2006. Visto em: 10 de agosto de 2017. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/889/9011>

 

SQUIRE, Corinne. O que é narrativa? Civitas - Revista de Ciências Sociais, n.º 14, 2014. Visto em: 10 de agosto de 2017. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=74231120006>

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