Literatura infantil: a construção de identidades em O menino quebrincava de ser, de Georgina Martins

Cristovão Mascarenhas
A escola, os professores e a família constituem-se como importantes pontes mediadoras da produção do conhecimento de mundo para as crianças. Partindo da ideia de que essa proposição seja verdadeira, é necessário atentarmos para o modo como definimos conceitos, ideologias e tendências para, dessa forma, não reproduzirmos verdades absolutas e fixas. Acreditamos que a literatura funciona como um espaço difusor do encontro de identidades, um mecanismo capaz de mostrar que existem diferentes possibilidades e que um indivíduo, por apresentar gostos, práticas e vontades diferentes, continua sendo digno de respeito. Nesse texto, proponho discutir como a ideia da sexualidade está sendo concebida na literatura infantil e juvenil, mais precisamente, no livro O menino que brincava de ser, de Georgina da Costa Martins. A partir de uma leitura a contrapelo da história, procuro observar de que forma se constrói a identidade do personagem principal e as incongruências ocorridas nesse processo durante a narrativa.

“Dudu gostava muito de brincar de ser” (MARTINS, 2000, p. 4). Na primeira página do livro nos é apresentado Dudu, o personagem principal, seguido de uma de suas brincadeiras favoritas: brincar de ser. Na maioria das vezes, Dudu escolhia ser uma bruxa, embora lhe repetissem com frequência “mas Dudu, homens não podem ser bruxas, você pode ser um mago [...]” (MARTINS, 2000, p. 4), o garoto gostava mesmo era de ser bruxa. O gosto de Dudu pode ser interpretado como rasura das estruturas binárias: normal versus anormal; eu versus o outro. Essa diferença é constitutiva de sua identidade (homoafetiva) e, aos poucos, vai sendo demonstrado ao leitor que parte da identidade de Dudu não condiz com a que é esperada pelos pais.

“A mãe de Dudu, ficou muito preocupada, pois ele nunca queria ser o príncipe ou o rei, só gostava de ser bruxa, fada e até princesa.” (MARTINS, 2000, p. 5). No decorrer da história, podemos perceber que a identidade é marcada por representações sociais biologicamente definidas, os conceitos são fixos e tidos como definidores de determinados hábitos. O “comum” é que os homens sejam personagens do sexo masculino nas brincadeiras, o “esperado” é que os garotos gostem de jogar futebol. Determina-se que meninos brincam com bolas e carros, o diferente é tido como “anormal”, são práticas não-naturais. “Um dia Dudu estava com um vestido de sua mãe, um sapato de sua tia e uns brincos que sua avó havia esquecido em sua casa. Brincava distraído [...]” (MARTINS, 2000, p. 16). O fato do de Dudu possuir outras vontades preocupa os pais.

“Por causa dessas brincadeiras, resolvi levar o Dudu ao médico, para ver se ele tinha algum problema. Ele disse que queria ser menina.” (MARTINS, 2000, p. 17). A homossexualidade aqui é considerada uma patologia, um desvio de conduta sexual, buscando a padronização para a dominante heterossexualidade. É o discurso médico do século XVIII de que nos fala Foucault ser diferente e possuir gostos diferentes são indícios de anormalidade e loucura. Assim, não se adequar a uma norma tida como padrão é ser alvo de atenção e cuidado. O saber médico, nessa perspectiva, funcionaria como uma estratégia, um controle mais refinado sob o ser humano, reforçando a hegemonia da medicina, instaurando uma relação de poder.

Todos os comportamentos e atitudes “desviantes” devem ser considerados. Dudu é levado ao médico, mas os diagnósticos não identificam nenhuma patologia “No final da consulta, ele disse que não achou nada de errado com o Dudu, muito pelo contrário, disse que ele era um menino muito inteligente e sensível.” (MARTINS, 2000, p. 12). Os pais não se conformavam com as respostas dos médicos e sempre recorriam a outros, mas os resultados eram os mesmos “Mãe, o seu filho não tem nada, ele é um menino muito saudável. Nessa idade, isso tudo é normal [...]” (MARTINS, 2000, p. 63).

Segundo Woodward, a identidade é marcada pela diferença, pela simbologia e pelo social. Essa identidade, marcada pela diferença, possui símbolos concretos que permitem identificar nas relações sociais, por exemplo, quem é heterossexual e quem não é. Logo, a identidade é marcada também pela exclusão. Isso fica evidente também na história de Dudu, quando o pai o leva para o clube de futebol, por acreditar que essa é uma atividade “adequada” para meninos. Dudu escuta dos coleguinhas “Mulherzinha! Vou te derrubar no campo. Nunca vi mulherzinha jogar bola” (MARTINS, 2000, p. 30). Ou seja, para Woodward, a identidade é relacional. A identidade (homossexual) depende de algo de fora dela para existir, algo de outra identidade (heterossexual), de uma identidade que ela não é, que difere da identidade (homossexual), mas que, entretanto, fornece condições para que ela exista. Seguindo esse pressuposto, a identidade homossexual se distingue por aquilo que ela não é. Ser um homossexual não é ser um não-heterossexual, por isso a identidade é marcada pela diferença.

O medo provocado pela não aceitação, pela gozação, pelas agressões físicas e psicológicas são elementos atuantes da construção da identidade dos homossexuais. Dudu diversas vezes precisa negar a si mesmo, seus gostos e suas vontades para que não seja rechaçado pelos colegas ou agredido pelo pai. A identidade do garoto é, portanto, modelada desse lugar que ele ocupa de insegurança, incertezas e pouco conforto.

A nossa análise do livro O menino que gostava de ser mostra que a literatura infantil tem abordado questões que envolvem as minorias. Ao contrário do que estamos costumados a pensar, as histórias trazidas nas obras literárias infantis têm discutido temas ligados a questão da sexualidade, raça, gênero etc., mostrando que a literatura infantil contemporânea tem oferecido uma nova concepção de “textos para crianças”, aberta a múltiplas leituras, abrindo o espaço para questionamentos e reflexões.

Dessa forma, defendo nesse texto a ideia de que a literatura é um espaço que permite o contato com as diferenças, com os valores sociais, culturais e históricos da sociedade. Melhor, possibilita o questionamento desses valores, muitas vezes entranhados de preconceitos. Na literatura infantil, por exemplo, a abordagem de questões que envolvem a sexualidade pode contribuir para desconstruir conceitos fundados a partir de uma matriz heterossexual, tida como norma, como observamos em O menino que brincava de ser. Por isso, defendo também a importância da presença desses livros nas escolas para formação efetiva de leitores críticos. Destacando que os professores devem também ser agentes nesse processo, na mediação desses assuntos que, infelizmente, ainda são tabus resistentes e de difícil debate.



Referências:

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

MARTINS, Georgina da Costa. O menino que gostava de ser. São Vicente: DLC Editora, 4ª ed, 2000.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

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