“Isso é pra criança?!”

Mariana Rios
Desde a sua estreia, em 2010, o desenho Hora de Aventura alcançou grande popularidade, sendo bem avaliado pela crítica e pelo público. Mas que público é esse? A história de Finn, o humano, e seu amigo Jake, o cão, parece ser mais uma daquelas inquietantes obras que levam grande parte das pessoas à frequente afirmação: “isso não é para crianças”.

No Brasil, a classificação indicativa para a maioria dos episódios do desenho é de 12 anos, idade que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), é o marco final do status “criança”. Contudo, Hora de Aventura é, indiscutivelmente, um sucesso que agrada o público infantil, bem como o juvenil e o adulto. Uma simples verificação mercadológica pode reforçar o fato: há, nas lojas, todo tipo de merchandising e produtos disponíveis – além de jogos eletrônicos, brinquedos e produtos para casa, são oferecidas roupas temáticas para todas as idades. A popularidade entre crianças, no entanto, é mais evidenciada, não só pelo formato de apresentação (desenho animado), mas também pelo fato de ser exibido pelo canal Cartoon Network, direcionado ao público infantil. Em 2014, o canal foi identificado pelo Ibope como o quarto mais visto da televisão brasileira, sendo líder de audiência do público entre 4 e 11 anos. A revista eletrônica Istoé afirmou, ainda, com bases nos dados do Ibope, que o índice entre pessoas acima de 18 anos atingiu 28%.

Então, quais seriam as razões da insistência em não considerar Hora de Aventura como infantil? Talvez um dos principais motivos seja a complexidade temática: guerra, morte, pós-vida, medos, abandono parental, relacionamentos não tradicionais, crescimento, gênero e questionamentos a respeito da própria existência em geral são alguns dos temas que perpassam a trama. Observa-se, então, que o desenho aborda questões frequentemente negadas às crianças, temáticas que não seriam, no imaginário prevalente, adequadas para elas. Essa cisão entre conteúdos direcionados à infância e à fase adulta tem raízes no final do século XVII, quando “consideradas como seres radicalmente distintos dos adultos [...], as crianças vão sendo particularizadas e isoladas [...] do mundo adulto capaz de ‘corrompê-las’.” (PERES, 2007, p. 5).

A partir de então, passou a haver uma regulação do que seria veiculado aos pequenos, que atingiu por muitos anos – e ainda atinge – a literatura e, hoje, alcança os conteúdos da televisão. Trata-se também do que Walter Benjamin (2012, p. 256) chamou de “um preconceito inteiramente moderno, segundo o qual as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma existência tão incomensurável, que precisamos ser particularmente inventivos se quisermos distraí-las”. Isso está relacionado a uma concepção que pressupõe, em resumo, inocência e incapacidade interpretativa por parte das crianças, que então deveriam ser protegidas de determinados tópicos considerados densos e/ou delicados para elas em detrimento do que os adultos consideram como “educativo” e “didático” e que supõem que são interessantes para esse outro “menor”.

Entretanto, as crianças não estão excluídas da sociedade, de modo que essas questões abordadas pelo desenho animado (e outras mais) podem atingi-las em alguma instância e, portanto, podem e devem ser objeto de reflexão e diálogo com elas. Devemos,




[...] antes de tudo, não esquecer que eles são pessoas como nós, com os mesmos problemas existenciais que nós, e de certa forma com dilemas ainda piores, pois enquanto nós adultos já recebemos algumas respostas da vida, a deles ainda está totalmente em aberto, o que é muito mais angustiante. (LACERDA apud BELLÉ, 2014, p. 45)



Diante dessa noção, somada à popularização da televisão, pode-se pensar as animações televisivas como uma forma interessante de estabelecer diálogos a respeito de temas mais densos. Sobre a perspectiva da autora Lisa Mélinand, Bellé (2014, p. 44) explica a importância de a literatura infantil (nesse caso, ampliada para os desenhos animados) trabalhar assuntos considerados delicados: “a ficção provê à criança uma perspectiva em retrospecto, ativa memórias e atiça a imaginação, dando a oportunidade de a criança criar laços de identificação com as personagens e, assim, entender melhor o lugar onde está inserida”. Dessa forma, com um alcance cada vez mais amplo, a televisão e os desenhos por ela exibidos se tornam um potente canal para estabelecer diálogos a respeito dos mais diversos temas.

Para ilustrar um relevante tema abordado por Hora de Aventura, podem ser citadas as questões relativas a gênero. A temática é especialmente reforçada, atravessando diversos episódios do desenho, que parece constantemente brincar com o assunto, diluindo as margens conceituais e estereótipos, além de subverter papéis de expectativas sociais.

Há uma considerável incidência de representações femininas interessantes e potentes, apesar de os dois personagens principais serem do sexo masculino. A Princesa Jujuba (uma das personagens centrais do enredo), por exemplo, é uma garota muito inteligente, uma cientista, além de ser a líder social de um reino construído por suas próprias mãos. A mãe de Jake, o cão, aparece como uma figura valente, destemida e forte, lutando contra seus inimigos lado a lado com o pai de seu filho. Há também alguns episódios em que ocorre genderswap, isto é, em que o gênero dos personagens é “invertido” – figuras socialmente interpretadas como masculinas passam a ser configuradas como femininas e vice-versa. O interessante é que as personalidades são mantidas, de modo que Fionna não deixa de ter espírito aventureiro e integridade na luta contra o mal como tem Finn, sua “versão masculina”. Ou seja, tais interpretações de gênero se pautam, nesses episódios, principalmente por vozes, nomes e roupas, mas não em seus comportamentos e personalidades em si.

No entanto, vozes, nomes e roupas também são itens explorados em outros personagens, de modo que pode vir a diluir as margens de gênero do imaginário social coletivo de ordem binária. Diversos personagens brincam com esses limiares ou até mesmo se mostram indefinidos. O Tifanny, por exemplo, membro de uma gangue, possui nome feminino e é referido com artigo definido masculino e dublado por um homem. A Princesa Caroço, que a todo tempo exalta sua própria beleza e feminilidade, além do nome de “Princesa”, também é dublada por um homem. O Rei de Ooo, apesar de ter “Rei” como parte de seu nome, declara sua vontade de se tornar princesa do Reino Doce na eleição para novo(a) governante – e se torna, ao fim da votação. No episódio “Jake, o pai”, 6º da 5ª temporada, Jake apresenta uma de suas novas filhas: “E essa mocinha aqui é... Jake Junior!” – que tem seu nome, um nome costumeiramente masculino, derivado de “Jacob”, além do “Junior”.

Ademais, podem ser citados também: o(a) pinguim Gunter (nome germânico também masculino), que é entendido pelos outros personagens como sendo do sexo masculino, até que Gunter põe um ovo que dá origem a um gato cor de rosa – gerando confusão posterior quanto a seu gênero, havendo referência alternada através de pronomes tanto masculinos quanto femininos; B-mo, um robô videogame que tem coração e se comporta como um ser humano, mas que não tem sexo definido (embora goste de performar) – tanto que, nos episódios em gender-swap, B-mo continua o mesmo; Biscoito (ou Bebelício), um cookie que deseja tomar a coroa se tornar “Princesa Biscoito”. Princesa Biscoito tem dublagem feita por um homem, Fernando Mendonça; por fim, evidencia-se a importante crítica que Jake faz aos atos machistas do Rei Gelado, vilão que incessantemente tenta raptar princesas para casar-se forçadamente com elas: “Seu assédio constante ao sexo feminino me dá nojo!”.

Apesar de alguns adultos acharem que o desenho não serve às crianças, elas o apreciam, fato a que se pode atribuir como razão a abordagem de tom não excessivamente pedagógico, que as subestimaria enquanto leitoras do mundo. Percebe-se que “A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas [...]” (BENJAMIN, 1987, p. 236-237 apud PERES, 2007, p. 8) – e Hora de Aventura faz isso de modo formidável. Não visa necessariamente educar crianças no sentido de formatar comportamentos, forjar lições. O desenho aborda diversas temáticas sobre as quais as crianças podem refletir, concordar ou rejeitar, atuando com sua autonomia e liberdade interpretativa e criativa; mas a diversão parece ser o fator principal que Hora de Aventura se dispõe a proporcionar.



REFERÊNCIAS

AQUINO, Wilson. Os trunfos do Cartoon Network. Istoé. São Paulo, jan. 2016. Disponível em: <http://istoe.com.br/360851_OS+TRUNFOS+DO+CARTOON+NETWORK/>. Acesso em: 6 ago. 2017.

ARIÈS, Phillipe. A descoberta da infância. In: ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006. p. 17-31.

BELLÉ, Junior. Era uma vez... A densidade da literatura infantil. Revista da Cultura. São Paulo, n. 78, p. 42-45, jan. 2014.

BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 254-262.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 3 jul. 2017.

LEWIS, Clive Staples. Três maneiras de escrever para crianças. In: LEWIS, Clive Staples. As crônicas de Nárnia. Tradução de Paulo Mendes Campos. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 741-751.

PERES, Ana Maria Clark. Literatura infanto-juvenil: para que fazer? Suplemento literário de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 1306, p. 3-9, out. 2007.

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