Escrever com a voz
Ana Clara de Carvalho
A literatura, em seu sentido amplo, compreende interseções e modos alternativos de pensar a realidade. Quando se trata de tradição da oralidade, considero pensar num modo de escrita com a voz, as ordens e as desordens que dominam a amplitude da linguagem.
É por intermédio das histórias contadas por minha avó materna, Luiza Santiago, que escrevo aqui como forma de agradecimento por poder conhecer tanto do mundo numa linguagem única que é a dela. Em paralelo, procuro também discorrer um pouco sobre como a tradição do narrar mudou com o passar dos tempos e se insere numa união entre ficções e realidades.
A tradição de contar histórias é desconexa e transmite uma repetição que, muitas vezes, não conseguem ser conclusas. Há algum tempo venho gravando em áudio as histórias que minha avó conta. Ela não entende muito de tecnologias e diz que não largamos “esse negócio que vocês ficam o tempo todo ‘assim’– e aponta com as duas mãos em direção aos olhos”, esse negócio é o celular/tablet. Essa seria, talvez, uma das razões de estarmos perdendo a eficácia no contar histórias.
Minha avó não frequentou a escola, mas conhece muitas histórias ao pé da letra. As histórias Meninice segundo, um livro de leitura com textos simples para alunos das séries primárias, de 1958 escrito por Luiz Gonzaga Fleury; fábulas, cordéis, histórias do ‘abc’ e entre outros gêneros que percorrem sua trajetória com a narrativa.
Bem, vó Luzia não aprendeu a ler, mas ouvia todas as histórias que o irmão mais velho contava e, assim, gravou as que ainda hoje conta a mim e aos meus primos. Partindo da curiosidade sobre a origem desses textos e da vontade de investigar sobre essas histórias, comecei uma pesquisa. É basicamente assim: ela me conta um trecho, eu olho na internet e, quando acho, chamo ela para ler junto; chega a quase ser fiel ao que ela conta.
As que ela mais conta são fábulas infantis “O urubu e o sapo”, “A cigarra e formiga”, “A história da borboleta”, “A festa no céu” e os cordéis como “A vida de Pedro Cem”, “O capitão do navio”, até mesmo trovas portuguesas como “A princesa da Pedra Fina” etc. Descobri através dessa simples pesquisa que as histórias são muito parecidas e que minha vó tem uma linguagem peculiar para contá-las. Ou seja, ela desenvolve do seu jeito e narra como se tivesse muita proximidade com os personagens, conta como se fosse uma história sua de fato. Diante disso, podemos pensar a figura do narrador/contador como “Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso, Narração e Ficção praticamente nascem juntas. ” (LEITE, 1985).
Uma descoberta curiosa para mim diz respeito a literatura de cordel. Esse gênero literário que possui uma característica melódica nas rimas, ao qual também se atribuem uma lição de moral ou história de conhecimento popular. A Vida de Pedro Cem é o título de um, escrito por Leandro Gomes de Barros nascido em 1865, e conta como um homem que tinha todas as riquezas, perdeu tudo e passou a pedir esmolas pela rua, assim como faziam com ele – e ele negava.
Ela começa:
- Uma esmola a Pedro Cem... Já achou? Misericórdia.
Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal.
Eu completo com a leitura no computador:
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral.
Então, ela termina o verso:
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real.
E continua:
- Repara! Um dia, - eu não sei contar ela toda, - um dia uma mulher se ajoelhou, tava com fome, no meio da rua, se ajoelhou nos pés dele pra ele dar um dinheiro, sei lá como foi, ele disse: reconheça seu lugar, levante-se e vá embora – ó fiquei arrepiada – a mulher levantou, saiu chorando. E porque tem essas coisa antiga nesse negoço [o computador]?
- É porque é cordel, vó... então é só colocar um pedacinho aqui que acha.
- Aah e o que é cordel? É coisa antiga guardada?
- É um jeito de escrever, aqueles livrinhos que vem com as trovas...
- Apois é isso mesmo! É um livro que tem a capa e tem o... ABC, chamado, e eu achava que aquilo era um exemplo muito danado: no mundo tem de tudo, né? Ele tinha que passar por aquilo tudo pra pagar o que ele fez” quem comprava os abc, chamava abc esse livro.
Pode-se, então, pensar nos mecanismos de ficcionalização que utilizamos ao contar uma história. E ao trazer o exemplo de minha avó, justifico que a maneira simples de contar um fato, em seu universo literário, corresponde a uma grande energia criativa, escrever com a voz.
Para Walter Benjamim, a natureza narrativa compõe-se de forma latente numa “dimensão utilitária [...] que pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida” (BENJAMIN, 1994). É assim que as histórias contadas apresentam um teor de construção de uma moral. A narração tradicional se faz de valores coletivos que completam uma comunidade estável. É assim também nas fábulas de cunho educativo que circulam num universo mais afastado. Muito embora, numa concepção mais moderna em que as questões morais estão sendo postas à prova e sendo revogadas, para um cenário mais propício a pensar abertamente sobre as possibilidades.
Pensar numa escrita oral e criativa é lembrar de relatos que, para mim, são importantes enquanto sentimento do mundo e das relações, dos afetos; é encantador e esperançoso poder ouvir essas histórias e entendê-las diante dos contextos e da vida de minha avó. Para além disso, elevo também o poder das histórias agrafas que ela conta, histórias da sua vida e da família na roça, dos tempos de fartura e de falta e como tudo isso engloba a inventividade de narrativas. Histórias que ela rega com carinho, assim como ela rega todos os dias as margaridas de seu jardim.
“Agora já esgotei o repertório, mas ainda tem mais uma” Luzia Santiago.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In.: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
LEITE, Lígia Chiappini M. O Foco Narrativo. São Paulo, Ática, 1985.
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