Tropicália: a instalação e a Nova Objetividade Brasileira
Leticia Carvalho e Gabriel Amorim
REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Jardel Dias. Parangolé: anti-obra de Hélio Oiticica. Disponível em: <www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=856&titulo=Parangole:_anti-obra_de_Helio_Oiticica>. Acesso em: 11 jun. 2017.
OLIVEIRA, Ana de. Antropofagia - Geléia Geral. Disponível em: <http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/geleia-geral/antropofagia>. Acesso em: 11 jun. 2017.
OLIVEIRA, Ana de. Nova Objetividade - Geléia Geral. Disponível em: <http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/geleia-geral/nova-objetividade>. Acesso em: 11 jun. 2017.
Tropicália, nome atribuído ao movimento cultural de ruptura que ocorreu no final dos anos 1960, é muito associado ao emblemático disco Tropicália ou Panis et circensis, lançado por figuras marcantes do tropicalismo: Caetano Veloso, Os Mutantes, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão e Tom Zé, ainda com os poetas Capinam e Torquato Neto, e o maestro Rogério Duprat. No entanto, antes do lançamento do disco e da “Geléia geral” do Panis et circensis, Hélio Oiticica, artista plástico e anarquista, expôs a obra “Tropicália”, em 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) junto com outras (os) artistas, costurando o que foi chamado de “Nova Objetividade Brasileira”. A mostra coletiva foi organizada por críticos e artistas, como o próprio Oiticica, Lygia Clark, Carlos Vergara, Lygia Pape, Mário Pedrosa, entre outras(os) participantes da cena artística do eixo Sul-Sudeste, principalmente. No presente texto, nos atentaremos principalmente aos trabalhos de Hélio Oiticica e Lygia Clark e seus desdobramentos, devido à necessidade de um recorte e à possibilidade de diálogo com o tema principal da Tropicália, ainda que haja um universo muito mais vasto nas artes plásticas do período.
O discurso levantado na exposição “Nova Objetividade Brasileira”, em 1967, apresenta diálogo direto com o modernismo paulista de 1922. Uma das principais influências do movimento cultural Tropicália é o “Manifesto antropófago”, publicado em maio de 1928 pelo modernista Oswald de Andrade. O manifesto se apropria do termo “antropofogia” para remeter às práticas sacrificiais de sociedades indígenas brasileiras e o utiliza como uma metáfora para sua proposta estética, cultural e política ‒ consumir, de forma crítica, manifestações culturais estrangeiras e valores culturais reprimidos pelas colonizações, para tirar daí uma arte “nova” e “genuinamente brasileira”. Assim como o modernismo de 1922 se propôs, a “Nova Objetividade” se colocava sob o termo de “vanguardas” e queria discutir a possibilidade de buscar soluções para arte “propriamente nacionais”, desvinculando-se da ideia de cópia de valores estrangeiros. Oiticica escreveu o “Esquema geral da Nova Objetividade”, uma espécie de manifesto que elenca por itens o que compõe a nova vanguarda da arte brasileira, ainda que queira se distanciar dos “ismos” e das noções de escolas, movimentos no sentido tradicional. Oiticica conversa com outras tendências artísticas, como o concretismo e o neoconcretismo, fala em antropofagia, em happenings, em uma tomada de posição em relação a questões sociais, políticas; seria a participação do artista e “seu povo”, na problemática da antiarte, entre outros levantamentos que o artista julga relevantes. Hélio Oiticica, de fato, rompe com uma sequência de produção artística nacional, independente de sua defesa pelo “autenticamente brasileiro”, que se apresenta principalmente na apropriação de uma cultura popular do samba, periférica, do Rio de Janeiro. A “Tropicália” foi a obra que acabou dando nome ao movimento artístico, ainda que Caetano tenha pontuado intenções diversas no trabalho que ele investia na música e o campo de ação do Oiticica, como a defesa de uma arte nacional, Caetano e Gil pensaram em uma proposta mais abrangente, dialogando abertamente com o rock‘n’roll, música eletrônica etc. Oiticica montou uma instalação labiríntica, em um modelo próximo a arquitetura vista nas favelas do Rio, com elementos associados ao clima tropical, como areia, plantas e araras. Era como um jardim aberto, sujeito às intervenções; o sentido do trabalho era atravessado pela própria participação de espectador, que usufrui e intervém.
Essa também era uma problemática na carreira de Lygia Clark, uma pintora e escultora mineira, que se dizia como “não artista”. Junto com Ferreira Gullar, Lygia Pape e outras(os) artistas, Clark assinou o manifesto neoconcreto, em 1959. A artista também se alinhava a essa ideia de ruptura dos limites artísticos, o abandono do cavalete, as noções de performance, a arte como ação e participação. Sua obra, “Corpo Coletivo”, é a costura de vários pedaços de roupa ligados em diversos corpos, que se movimentam como um só ‒ como um macacão colorido e compartilhado, que influencia nos movimentos individuais e faz pensar numa organicidade e em um coletivo. Outra obra marcante é a “Baba antropofágica”, chamada por Lygia de “proposição”, na qual pessoas com carretéis na boca iam puxando a linha, sendo uma pessoa alvo desses fios que desenrolavam das bocas. É interessante pensar na contribuição dessas novidades artísticas e nesses manifestos, encontros de tendências, como muito marcantes para o entendimento de arte contemporânea no país. A cena das artes plásticas do período dialoga muito com conceitos que envolvem a contemporaneidade. O corpo, a noção de coletividade, de uma arte que escape ao convencionalmente visto em museus, que seja mais performance e proposição do que estatismo, são fundamentais para o pensamento desses artistas.
Os Parangolés, emblemática criação de Oiticica, eram “capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou carregadas” (CAVALCANTI, 2002), assim a estrutura da obra depende da ação do participante e a performance é o happening que surge da interação, podendo ser uma dança ou o movimento causado pelo vento. Com os Parangolés, Oiticica questiona a concepção de que arte é o que está mumificado no museu ao potencializar a capacidade de criação artística. Os Parangolés criam uma experiência momentânea e única: sua existência é mais importante do que o objeto. Essa obra propõe a movimentação artística que se dá pela vivência, fugindo da racionalização da coreografia de um museu, como Oiticica pensou sua arte: “O que interessa é justamente jogar de lado toda essa porcaria intelectual [...] e procurar um modo de dar ao indivíduo a possibilidade de ‘experimentar’”. Sendo uma movimentação na vida, o Parangolé não é só uma obra, mas todo o espaço que a performance ocupa, agita, intensifica.
Assim como Os Parangolés, as instalações de Oiticica circulam pelo conceito “supra-sensorial” desenvolvido por ele também em 1967. Esse conceito apresenta a possibilidade de uma arte realmente aberta ao público, tornando-o um participador ativo, estimulando sua criatividade e a descoberta “da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano”, como dito por Oiticica. Nesse sentido, apresenta-se a instalação “Tropicália” e, em seguida, o reconhecido movimento de mesmo nome, que, apesar de não surgir dessas ideias (na música, por exemplo), acumula esses conceitos e hoje é reconhecido como isso e mais, apesar das diversas e difusas intenções.
Importante discutir, no entanto, qual o diálogo estabelecido entre a arte que se propõe “genuinamente brasileira”, uma solução nacional diante das ideias estrangeiras, com a complexidade e diversidade que compõem o Brasil. Oiticica fala em “museu é o mundo”, levanta a bandeira de buscar expressões fora dos espaços legitimadores de arte, como o próprio museu, centros culturais, academia etc.; no entanto, colocamos a reflexão de como se deu a troca entre a cultura periférica (e, aqui, tratamos principalmente da realidade carioca) e a ruptura de Hélio, marcado em um campo de privilégio e validação artística. Os “Parangolés” são ditos como “antiarte”, consonante com toda a proposta de Oiticica; a obra traz referências das rodas de samba, o corpo que se movimenta, dança e o lugar do espectador, que passa a agir; a obra acontece quando o outro interfere, veste os panos e estandarte, o corpo atravessa os “Parangolés” e vice-versa. A história do nome dado a esse conjunto de obras é contada por Oiticica a Lygia Clark: o artista plástico estava passando de ônibus pela praça da Bandeira, no centro do Rio, e viu um mendigo, em um terreno baldio, com estacas organizadas no chão e escrito “PARANGOLÉ”. Daí, Oiticica decidiu como se chamaria a performance que levaria a circular mais tarde. As contribuições e realizações são importantes, porém a discussão de como esses processos aconteceram também é. Obviamente, hoje, temos outras contribuições teóricas, diferentes cenários políticos, e a ocupação desses focos de legitimação e debate é mais diversa. No entanto, é válido pensar sobre quais as concepções de cultura, arte, popular, nacional e artista que toda a galera que movimentou a época da Tropicália compartilhou. Pensamos que a interferência, a ruptura, se deu até certo ponto, entendendo que hábitos e vida de pessoas que estavam ali, como matéria prima de instalações e performances, pouco participaram dessas novidades contemporâneas.
REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Jardel Dias. Parangolé: anti-obra de Hélio Oiticica. Disponível em: <www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=856&titulo=Parangole:_anti-obra_de_Helio_Oiticica>. Acesso em: 11 jun. 2017.
OLIVEIRA, Ana de. Antropofagia - Geléia Geral. Disponível em: <http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/geleia-geral/antropofagia>. Acesso em: 11 jun. 2017.
OLIVEIRA, Ana de. Nova Objetividade - Geléia Geral. Disponível em: <http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/geleia-geral/nova-objetividade>. Acesso em: 11 jun. 2017.
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