Tropicália e Cinema Novo: produções e novas criações (identitárias)
Por Cely Pereira e Gabriel Santiago
Referências
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008;
DESBOIS, Laurent. A odisseia do cinema brasileiro: da Atlântida a cidade de Deus. Trad. Júlia da Rosa Simões. São Paulo: Companhia das Letras, 2016;
CIPOLLONI, Marco. Cinema novo e depois. Quero ser novo de novo: “uma quest(ão) de perspectiva. Disponível em <http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Cipolloni2.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2017.
“Desculpe-me, camarada, atrapalhá-lo em sua luta de classes tão importante, mas para qual lado fica o cinema político?”, questiona a atriz alemã Anne Wiazemsky, em francês, a um lusófono Glauber Rocha parado em pose dramática à beira de uma estrada europeia campestre. Como resposta, o cineasta, em português, sem rodeios e intensificando o caos à la Babel, indica, literalmente aos gestos, o caminho para um cinema situado do outro lado do atlântico; cinema esse “perigoso” e, claro, “divino, maravilhoso”. Mudança brusca: o som do ambiente é substituído, em rasgo auditivo, por uma Gal Costa em plenos pulmões, interpretando, sob força do refrão, a canção “Divino Maravilhoso”, composta por Caetano Veloso. Corte.
Vento do Leste, filme de 1970, dirigido por Jean-Luc Godard e por diversos colaboradores, a partir da participação de Glauber na cena transcrita, propõe um estudo das possibilidades de articulação do viés estético cinematográfico “terceiromundista” com a do europeu godardiano. A canção, entretanto, rompe a certa homogeneidade do quadro, principalmente ao se levar em conta a quebra de tradição cultural e ideológica que sua inserção propõe: imersa em um filme europeu - representante do paradigma da boa cultura -, não precede a nenhum tipo de tradução de sua letra ou explicação de suas intenções: somente emerge, como se fosse auto explicativa - logo, ironicamente colonizadora. “Divino maravilhoso”, por sua vez, é intimamente relacionado com um outro movimento de caráter também confrontador, mas no âmbito das artes plásticas e da música. E esse quê irônico, cosmopolita, além das pretensões de valorização da cultura local através do contraste com o outro, está na raiz, tanto do Cinema Novo, como deste outro movimento autônomo, a Tropicália.
O Tropicalismo, ou Tropicália, contrariando a impressão que o termo pode sugerir à primeira vista, como aponta Caetano em “Verdade Tropical”, repercutiu no imaginário artístico brasileiro menos como um movimento reafirmador de uma identidade brasileira última e inegociável - portanto redentora de todas as mazelas históricas já vivenciadas - do que como propositora de uma identidade imprecisa, global, e que a tudo quanto é culturalmente relevante se engloba.
Ruídos coloridos
A Tropicália e o Cinema Novo, como expositores de novas nuances acerca de uma identidade brasileira, foram de encontro aos projetos uniformizantes de como se pensa o Brasil, com táticas e propostas de guerrilha poética atravessando totalmente as ações e perspectivas vigentes na época. Através do agregamento de diversos aspectos e espectros culturais, englobando música, artes plásticas, cinema, teatro, poemas e outras formas de expressão, os personagens da Tropicália viam possibilidades em um paradoxo: o embricamento, supressão e metamorfose de (des)qualidades estrangeiras com o que se via “intuitivamente” como inerente à brasilidade.
O cinema nacional e sua história tentam apresentar os desejos que permeiam a construção da identidade brasileira. Permanências, partidas, impurezas, pluralidade: difícil é contar as estórias e histórias que rodeiam o Brasil através de imagens em movimento. O Cinema Novo se mostra - assim, ousado - como uma das possibilidades do cinema brasileiro em lidar, também, com esse paradoxo: afinal, como se reconhece uma identidade nacional? Os cinemanovistas procuravam transpor em tela a viral realidade que permeava os interiores marginalizados da nação - seus filmes eram recheados de descrença; personagens mesiânicos descrentes quanto a um futuro inalcançável; a grande miserabilidade da seca e fome e outras mazelas atuantes em regiões relegadas ao esquecimento.
O Cinema Novo instituiu-se numa posição diametralmente oposta ao que era veiculado como modalidade de cinematografia hegemônica no território nacional à época (colonizado em parâmentros hollywoodianos). Tendo acesso às produções teóricas e estéticas francesas, italianas e soviéticas, os cinemanovistas compuseram, com elementos externos, algo não antes visto nos moldes do cinema brasileiro: uma concha de retalhos, mosaicos dissonantes. Não coincidentemente, assim como o tropicalismo, o Cinema Novo construiu-se através do paradoxo da renegação da pseudoidentidade imposta para a criação de um novo processo: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
Referências
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008;
DESBOIS, Laurent. A odisseia do cinema brasileiro: da Atlântida a cidade de Deus. Trad. Júlia da Rosa Simões. São Paulo: Companhia das Letras, 2016;
CIPOLLONI, Marco. Cinema novo e depois. Quero ser novo de novo: “uma quest(ão) de perspectiva. Disponível em <http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Cipolloni2.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2017.
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