A Reinvenção da Tropicália

Por Laercio Morais Santos
No caminho coercitivo de definir um vocábulo, nos deparamos com a Tropicália, uma verdadeira mobilização de sentidos para além das prescrições. À medida que ela promove a ruptura com o conservadorismo, assume o caráter transgressor que lhe é próprio. Defini-la nos coloca em um lugar perigoso; vamos rememorá-la como um movimento político, artístico e social que, apesar de sua pouca duração (1967-1968), vê muitos dos seus manifestos reverberarem até hoje.

A coerção que nos leva ao campo das definições, vê-se atravessada por algo muito pior: o silenciamento, tentativa abrupta de cercear a liberdade de expressão. Orlandi (1999, p. 83) aponta que, em todo caso, haverá silêncio acompanhado as palavras, visto que as relações de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre a censura. Essa realidade materializa-se na insistente tentativa da Tropicália de romper com as amarras do silêncio e promover a metacrítica a respeito de concepções artísticas.

Ao longo dos anos, é notório como a música ganhou espaço na dinâmica política. Em 1968, o Brasil via-se refém da ditadura militar e da censura. Apesar do mecanismo castrador de silenciamento, constituiu-se no país uma nova linguagem, desprendida de purismos, que importava e ressignificava elementos culturais e estéticos: a Tropicália. Atualmente, assolados por uma grande instabilidade política, vemos essa linguagem reinventar-se.

Em entrevista à BBC, Caetano Veloso foi questionado quanto a “Uma tropicália ainda inexplorada”. Ele respondeu que o funk carioca e o sertanejo universitário possuem aspectos que os tornam possibilidades. Não só nesses ritmos se percebe certa inclinação à Tropicália (ainda inexplorada). De modo mais geral, podemos testemunhar plurissignificações magistralmente mobilizadas para a construção do objeto artístico e a denúncia das mazelas que circundam a realidade nacional.

Isso nos leva a inferir que do discurso provocativo tropicalista à irreverência das músicas contemporâneas, há um ponto de convergência: a subversão. A subversão é um dos elementos que tornam perceptível o caráter transgressor da Tropicália, que se traduz em diversos campos artísticos. É o que se ratifica em “É proibido proibir”.



E eu digo não ao não

Eu digo:

É proibido proibir

É proibido proibir

É proibido proibir…

(CAETANO VELOSO, 1968)


É com esses dizeres que o eu lírico vai de encontro à censura e à ditadura vigente e reafirma o tom revolucionário do movimento tropicalista ‒ tom esse que nem sempre foi bem interpretado. O uso de guitarras de rock durante os shows de Caetano, Gilberto Gil e a banda Mutantes, por exemplo, era visto como apoio ao imperialismo dos Estados Unidos. Na verdade, o movimento aspirava separar a MPB do nacionalismo que a dominava e, assim, partindo de uma ação estratégica, fundir elementos estrangeiros aos nacionais, a fim de repensar o fazer artístico.

Há uma linha tênue entre elementos como atração e mensagem, estética e denúncia. As músicas tropicalistas conseguiram, nesse sentido, estabelecer um equilíbrio, alcançando o sucesso na promoção do movimento e na relevância da mensagem que veiculavam. Sempre haverá controvérsias a respeito desses elementos. Aqui, queremos pensá-los como objetos predispostos à subversão, ou, ao menos, como passíveis de coalizão, com o propósito de performarem-se como transgressores. É o movimento que se pode perceber na música “Cadê o Gigante?”.



Falta ética, na política

No país do carnaval

Aproveita e já joga a granada

Pra ver se o efeito é mesmo de moral

O gigante acordou

Mas acho que ele tirou uma soneca

O dinheiro do povo é o povo que usa

Ou será que já voltou pra cueca?

(MC GARDEN, 2014)


Nesse funk, destacam-se dois aspectos. Primeiro, o aspecto crítico quanto a questões pontuais que rodeiam a sociedade brasileira, casos execráveis de corrupção, a violência policial nos protestos e o comodismo que tomou a muitos brasileiros. O segundo aspecto remete-nos à composição estética elaborada. É notável a construção de um ritmo que estabelece um diálogo entre o funk e o rap; o som do tradicional tamborzão está presente, porém unem-se a ele nuances rítmicas que foram apropriadas de outros estilos musicais.

Desatar os nós impostos pela burocracia, subverter o sistema e dar voz a locais de fala desprestigiados são conquistas notáveis daquilo que chamamos de “reinvenção da Tropicália” ‒ ela ganha vida e notabilidade não só pelo seu aspecto criativo, mas também no aspecto social.

Em meio a tantos nós, desentrelaçamo-nos, vemos (res)surgir um movimento vanguardista que se pretende para além da catarse, desvencilhar-se da “transparência” das obviedades cotidianas. É um devir que intenciona revelar e tensionar a tolerância com que se releva a torpeza dos dias, as mazelas sociais e o conservadorismo reacionário. O sumo de suas ações notáveis ora é a mobilização social, ora é o silenciamento acompanhado das palavras, ora é o sangue. A arte se reinventa e abre novas portas, um novo horizonte, a linguagem se atualiza. É a vida em movimento.



REFERÊNCIAS

Caetano Veloso. É Proibido Proibir. Youtube, 23 jul.2010. Disponível: <https://www.youtube.com/watch?v=-xkxIpeGVMc>. Acesso em: 7 jun.2017.

IDENTIFISIGNIFICADOS. Movimento. Disponivel em: <http://tropicalia.com.br/identifisignificados/movimento> Acesso em: 5 jun. 2017.

MC GARDEN. Cadê o Gigante? Youtube, 10 fev. 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=J8jxYjt6oxc>. Acesso em: 9 jun. 2017.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009.

Tropicália. Direção: Marcelo Machado, Produção: Fernando Meirelles. São Paulo (BR): BossaNova Films, 2012, 1 DVD.

VASCONCELOS, Mônica. “Funk carioca e sertanejo universitário são a nova Tropicália”, diz Caetano Veloso. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/05/160407_caetano_mv>. Acesso em: 9 jun. 2017.

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