CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL: GÊNESE E LEGADO
Gabriel Amorim
Não é possível pensar na Linguística como ela é hoje sem pensar no genebrino Ferdinand de Saussure (1857-1913), cuja reflexão e elaboração teórica repercutem mesmo cem anos após sua principal publicação, obra póstuma atribuída a ele por seus organizadores-redatores – Albert Sechehaye (1870-1946) e Charles Bally (1865-1947), com a colaboração de Albert Riedlinger (1865-1947).
Publicada em Paris, em maio de 1916, pela editora Payot, o Cours de Linguistique Générale (Curso de Linguística Geral/CLG), é o resultado da compilação das anotações dos estudantes que frequentaram os três cursos de Linguística Geral, ministradas por Saussure na Universidade de Genebra, entre 1907 e 1911. A obra traz o projeto inovador dos cursos do linguista, novidade que, no futuro, rompe com a linguística histórico-comparativa e é o primeiro passo do estruturalismo.
Apesar de “Linguística Geral” retomar “o nome administrativo do curso genebrino”, Simon Bouquet e Rudoulf Engler, no prefácio do livro Os Escritos de Linguística Geral, dizem que, em seus cursos, Saussure não se preocupava em justificar esse nome administrativo e “descrevia sua abordagem de ensinamento como ‘uma filosofia linguística’.” (2004, p. 11). Hoje, o termo é utilizado para se referir a um conjunto de reflexões da produção intelectual de Saussure.
Gênese
A gênese da obra está envolta em uma série de problemas. “Não foi escrito por Saussure, nem teve, claro, sua aprovação.”, diz o prefácio do livro O Efeito Saussure, organizado por Carlos Alberto Faraco (2016, p. 11). Somente o colaborador Riedlinger assistiu “a dois dos três cursos de linguística geral, diferentemente de Bally e Sechehaye, que [...] não puderam estar presentes em nenhum desses cursos” como diz Marcio Alexandre Cruz (2016, p. 26) no artigo “Por que (não) ler o Curso de linguística geral depois de um século?”. Os organizadores-redatores, tão referenciados, que publicaram a obra não estiveram presentes nos cursos.
Além da dissertação "Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes", de 1879, Saussure não publicou quase nada e é até hoje conhecido pelo “texto de terceira mão”, cuja “questão autoral e epistemológica [...] só foi devidamente problematizada quarenta anos depois” afirma Faraco (2016, p. 11). Enquanto isso, os documentos autorais dos cursos de Saussure, considerados já perdidos, só foram encontrados em 1996 e publicados em 2002 por Simon Bouquet e Rudoulf Engler, no livro Escritos de Linguística Geral. As palavras do autor surgiam após 80 anos de discussão do que lhe foi atribuído. Com os escritos, foi possível perceber que a obra de Saussure não estava acabada e isso aponta tanto em favor, quanto contra o CLG: o clássico da Linguística apresenta uma obra concluída (excelente para estudo), mas atribui toda reflexão para quem não a concluiu.
Por outro lado, é sabido que não podemos nos voltar simplesmente para os escritos. Em questão de coerência, o Curso de Linguística Geral, por ter sido trabalhado para a publicação, tem maior utilidade do que os “fragmentos muito difíceis de serem compreendidos” de Saussure, como disse Jurgen Trabant (2005 apud CRUZ, 2016, p. 33) em seu artigo Faut-il défendre Saussure contre ses amateurs?. Também não podemos desconsiderar o trabalho dos organizadores-redatores. Estes são responsáveis diretos pela vida dessa obra, cuja relevância é incontestável.
Faraco (2016) afirma, por fim, que podemos atingir um ponto de equilíbrio na discussão da gênese, já que os manuscritos deixaram visível a relação do pensamento de Saussure com o CLG. Contudo, não se deve esquecer os problemas da obra, que, atualmente, tem o apoio também dos manuscritos para ser lida.
Legado
“Pai da linguística moderna” e “fundador da semiologia” são alguns dos títulos que consagram o nome de Saussure, decorrentes do Curso de Linguística Geral. Alvo de diversas críticas em um primeiro momento, a obra só recebe uma boa resenha em 1923, após sua segunda edição, como evidência Faraco (2016). É Leonard Bloomfield (1887-1949) que se atenta para o “interesse pelos aspectos gerais da linguagem humana” (FARACO, 2016, p. 13), abrindo espaço para uma linguística futura com objeto e método próprio.
O Círculo Linguístico de Praga, dez anos após a publicação do CLG, é criado por Vilém Mathesius (1882-1945) e tem grande importância para sua divulgação. O Círculo toma da obra sua visão sistêmica como teoria fundamental para seu método de análise. Assim, entre congressos e traduções, a expansão da leitura do CLG deu origem a muitas análises da língua e outras implicações, como a repercussão para outras áreas do conhecimento.
A importância do CLG para as ciências humanas do século XX é fundamental, pois a corrente de pensamento estruturalista se inspira no modelo linguístico proposto por ele. O antropólogo e etnólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), o crítico literário Jean Starobinski (1920-), o professor marxista Louis Althusser (1918-1990), o analista do discurso Michel Pêcheux (1938-1983) e muitos outros levaram para suas áreas uma perspectiva estruturalista de análise, propagando o pensamento.
Toda sua influência hoje, apesar de ser visto como uma corrente importante, recebe maior atenção pelos movimentos que gerou. Reagem hoje ao estruturalismo o pós-estruturalismo e o desconstrutivismo.
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De uma gênese complexa a um legado imenso, o Curso de Linguística Geral é uma obra viva que continua a inspirar reflexões e posicionamentos. Portanto, seu centenário não deve ser simplesmente lembrado, mas comemorado pela sua respeitável existência.
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