Entrevista com Evanilton Gonçalves
Entrevista com Evanilton Gonçalves
Gleisson Alves
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia - PPGLinC/UFBA, na linha História da Cultura Escrita no Brasil (HISCULTE). Formado em Letras Vernáculas (UFBA), Evanilton Gonçalves desenvolve, desde 2012, investigações científicas sobre práticas de letramento vernacular, tendo como objeto de pesquisa o grafite e, como sujeitos de pesquisa, os grafiteiros de Salvador. Em seu trabalho, compreende o grafite como uma prática de escrita multissemiótica, e é a partir dos registros nas ruas, mapeando a cidade, acompanhando o grafite e os grafiteiros, que seu trabalho vem sendo construído.
PET-Letras: Como se deu a sua pesquisa?
Evanilton Gonçalves: Então, eu acho que para falar sobre minha pesquisa eu tenho que falar, muito brevemente, de como tudo começou. Eu comecei a pesquisar o grafite aqui em Letras, em 2012. Eu tive a oportunidade de ser orientando do professor Antônio Marcos e, antes disso, eu não havia pensado nessa possibilidade de pesquisar o grafite aqui em Letras. Uma outra coisa que eu acho que é importante dizer é o porquê eu escolhi pesquisar o grafite aqui, e isso tem a ver, justamente, com a questão de uma escolha afetiva. Desde a minha juventude, eu lido com pessoas que produziam grafites nas mais diversas paredes e eu ficava fascinado com aquilo, eu cresci e me envolvi um pouco com esse movimento, o grafite. Eu frequentava eventos do movimento hip-hop, e o grafite é um dos elementos do hip-hop. Isso fez com que cada vez mais eu me aproximasse dessa linguagem ao ponto de passar até a produzir, em determinado momento, na cidade, mas por um momento muito curto. Depois veio trabalho, me afastei de tudo. Após um tempo consegui entrar na universidade, e até o quarto semestre não tinha ideia do que pesquisar, não era vinculado a nenhum grupo de pesquisa, e isto me causava uma certa angústia, porque eu via alguns colegas pesquisando e eu tinha interesse, mas não sabia qual caminho seguir. Até que surgiu a oportunidade, depois que fiz a disciplina com o professor Antônio Marcos, ele me convidou para ser orientando dele e para frequentar, como ouvinte, o grupo sobre letramentos, que era um que ele coordenava. Na época, ele estava vinculado ao departamento de linguística, e eu fui vendo o trabalho que alguns colegas desenvolviam na iniciação científica, até que eu fiquei pensando. Depois que eu li, e aí eu acho que uma questão muito importante, o livro Letramentos de Reexistência, da professora Analu – Ana Lúcia Silva Souza – foi que eu tive um insight, e eu falei: “Ó, eu posso pesquisar o grafite como objeto, em Letras, já que a professora trabalhou na sua tese a ideia do hip-hop como agência de letramento e ela explora todos os elementos do hip-hop”. Mas o foco dela na pesquisa foi o rap, o MC. Aí, eu falei “É, posso seguir esse caminho, então, de tentar dar conta de pensar um pouco mais o grafite, que é algo que me interessa”. Foi, então, a partir dessa leitura, dessa coisa embrionária de pensar o grafite como objeto de pesquisa que eu apresentei para o professor que, então, era meu orientador, e ele falou “Massa! Pense aí, tente escrever alguma coisa, vamos juntos pensando”. Enfim, a gente desenvolveu um projeto, e, a princípio, eu comecei a pensar o grafite como uma prática de letramento, ou seja, na minha iniciação científica, no primeiro ano, a minha ideia era tentar mostrar como o grafite era uma prática de letramento. A gente pensava diferentes conceitos de letramento, mostrando toda a polissemia que existe a respeito do termo, as confusões teóricas que ainda se faz e como ainda há vários objetos da cultura escrita marginalizados nos estudos sobre letramento. Um deles, obviamente, é o grafite; outro que é importante citar são os grafitos de banheiro, que inclusive uma amiga minha, Aline, pesquisa no mestrado agora comigo também. Então, veio da iniciação científica até o mestrado. E aí, nesse primeiro ano de iniciação científica, eu consegui a partir de diversos aportes teóricos, trazendo a própria Analu, Soares, Rojo, enfim, todos esses grandes autores que trabalham com a questão de letramento, pra mostrar como é possível identificar características e como é possível perceber o grafite como uma prática de letramento. No segundo ano de iniciação científica, e tanto no primeiro ano quanto no segundo ano, eu consegui ser bolsista de iniciação científica. No primeiro ano, via CNPq e, no segundo, via Fapesb. Então, no segundo ano, consegui dar andamento a essa pesquisa e pensar um pouco mais além. Pensar que o grafite não é simplesmente uma prática de letramento, mas ele é uma prática de letramento muito específica, que é a chamada prática de letramento vernacular, que é, justamente, um letramento que vai se contrapor aos letramentos que a gente, na academia, está familiarizado, que são letramentos institucionais. Os letramentos vernaculares são aqueles que não são regulados socialmente, eles têm uma regulação própria, têm uma lógica própria, mas não é uma instituição que vai regular o que deve ser feito, né, e por isso, obviamente, eles são marginalizados. O grafite é um exemplo disso, se a gente pensar aqui, mais amplamente, a questão dicotômica de diferentes linguagens, a gente poderia dizer que a pichação é também, embora seja uma questão polêmica, discutir o que é grafite e pichação. Eu vejo como práticas, hoje, diferentes. Embora antes pensasse como práticas iguais ou semelhantes, mas, hoje, eu penso que são práticas diferentes, mas que têm afinidades e distanciamentos, e, como eu disse também, os grafitos de banheiros, que são outros exemplos de letramentos vernaculares; e minha grande inquietação, na verdade, o que me fez pesquisar, durante esse tempo, o grafite, e inclusive o que me fez entrar no mestrado foi, justamente, perceber que há uma lacuna de pesquisa a respeito dessas escritas marginalizadas ou marginais, tanto aí pensando em marginais os seus autores quanto a própria prática em si, então, todas essas características fazem com que a instituição, a universidade, como um todo, não se debruce sobre essas práticas, ignore-as, totalmente. Nós somos permeados pela escrita, a escrita está por todos os lados. A gente sai na rua, a gente olha para um muro, tem um grafite, a gente olha pra frente, tem uma placa, por todos os lados a gente é permeado pela cultura escrita, e embora haja essa difusão toda de escrita, a gente... Como se os muros não tivessem escrito nada, né, como se não existisse o grafite. Então, a minha proposta, quando eu entrei no mestrado, foi dar continuidade, obviamente, a pesquisa que eu vinha desenvolvendo na iniciação científica e aprofundando a partir de um campo teórico muito específico. Eu ingressei no mestrado, aqui no programa de Língua e Cultura da UFBA, na área de história da cultura escrita no Brasil. E aí é interessante também, porque a minha inserção nesse grupo e o meu objeto de pesquisa são muito peculiares, pois todos os meus colegas estão se debruçando sobre testemunhos de escritos antigos – então, tem gente aí pensando século XVI, buscando fazer edições de textos antigos e tudo mais – enquanto eu estou na rua, né, registrando o grafite, mapeando a cidade. É um trabalho que conversa muito mais com a Antropologia, com a Sociologia, e aí uma outra questão importante: há muitas pesquisas sobre o grafite na área de Antropologia, Sociologia, Psicologia, Artes, mas não há, praticamente nada em Letras, embora seja uma prática de escrita multissemiótica. E esses são os motivos, também, que me fazem pesquisar o grafite, não só a questão afetiva, mas um caminho de pesquisa que se mostrou possível. Ao entrar no mestrado, na história da cultura escrita, eu passei a pensar como eu posso historicizar um pouco a respeito dessa história da cultura escrita, do grafite. Como eu posso mostrar que essa prática vernacular tem uma historicidade, tem determinados sujeitos que alimentam essa prática ao longo de anos e também mostrar quais são as características que se mostram presentes nessa prática aqui em Salvador. Porque o grafite de Salvador não é o mesmo de São Paulo, não é o mesmo grafite do Rio, tem aí uma relação muito forte com a questão da cultura, e que os sujeitos se embriagam da própria cultura. É muito evidente que o grafite produzido aqui em Salvador tem marcas de Salvador, por exemplo, como a gente tem as praias, é muito forte a presença de peixes e de sereias, esses personagens estão muito presentes nos muros da nossa cidade. Alguns sujeitos, que se apresentam enquanto grafiteiros, assumem determinadas identidades, através de pseudônimos, que são os nomes fictícios que eles criam para blindar a identidade. A sua identidade convencional, eu diria. De origem. O nome que eles assumem tem um certo significado. Foram vários elementos que eu fui percebendo, nessa pesquisa, desde 2012. E agora, o que eu tenho feito, basicamente, é alimentar essa continuidade na tentativa de aprofundar, um pouco mais, a respeito do que é o grafite. Pois, embora ele esteja bastante disseminado, na mídia, até como um objeto que a gente poderia dizer que tá na moda, em termos de apreciação estética, o grafite ainda é muito pouco conhecido em termos conceituais. Então, as pessoas olham pra uma expressão colorida e valorizam por ser colorida, mas se virem uma expressão monocromática, tendem a rechaçar. A questão dos nossos sentidos tem muito dessa relação, de como o grafite consegue seduzir muitas pessoas, a questão das cores vibrantes, etc. Embora as pessoas possam olhar pro grafite e não conseguir lê-lo totalmente, no sentido de dizer que texto tá escrito ali, porque realmente é difícil. Como você pode olhar pra elementos que fazem parte do grafite, como a tag, que são assinaturas dos grafiteiros e grafiteiras, e não consegue identificar aquilo ou achar que aquilo ali é só um rabisco, como as pessoas que não olham mais cuidadosamente tendem a dizer. Então, basicamente, o que eu faço é isso.
PL: Como é a sua relação com os/as grafiteiros e grafiteiras?
EG: Os sujeitos do grafite, os sujeitos envolvidos no movimento do hip- hop, em geral, rechaçam a Academia. Um dos problemas que eu tive foi como chegar nesses sujeitos, porque eu sou negro, sou periférico, morava no São Caetano, mas, na medida que eu me apresento como pesquisador, causa um distanciamento, e uma outra coisa, também, que foi muito importante pra mim, como eu disse, tudo isso começou de fato com a leitura do livro da professora Analu, porque sem ele eu, provavelmente, estaria pesquisando uma coisa diferente, foi perceber uma necessidade de assumir uma postura muito ética com esses sujeitos de pesquisa, e aí há uma diferença importante: eles não são objetos de pesquisa, eles são sujeitos. Uma outra questão é como dar uma contrapartida para esses sujeitos de pesquisa, porque eu vou ter o meu TCC defendido, como eu tive, vou ter minha graduação. Vou ter minha dissertação defendida, e vou ter o meu título de mestre. E o retorno, “Que retorno eu posso oferecer a esses sujeitos que colaboraram para a construção do meu trabalho?”. Pensando em tudo isso, desde o início, eu construí um blog, intitulado Letras nas ruas – letrasnasruas.com – e um Tumblr, com o mesmo nome. No blog, eu escrevo, semanalmente, a respeito do grafite, seja aqui na cidade ou de fora, faço resenhas de filmes, dou notícias de eventos, a respeito da prática aqui em Salvador, ou fora. Funciono como uma espécie de “jornalista do grafite”, como alguns já me chamaram. E isso foi uma coisa muito interessante, porque houve uma grande adesão, muitos citam o blog, compartilham e comentam.
PL: Sobre a experiência e o processo, nas ruas...
EG: Eu pensei em fazer mapeamentos em determinados bairros em que há uma predominância do grafite. Eu comecei no centro da cidade, percorri vários bairros do centro, andando, sozinho, com uma máquina fotográfica, apenas, registrando um por um dos grafites que eu encontrava, pensando numa trajetória comum: “Eu percorrendo determinado bairro, o que é que eu enxergo?”. Então, eu registro o grafite, tento identificar a autoria daquele grafite e o tipo de grafite. Eu procuro descrever, minunciosamente em que local ele se encontra, e em seguida, posto no Tumblr, que é uma espécie de rede social. Transformei esta plataforma em um acervo digital do grafite. Hoje, conta com mais de quinhentas imagens, sendo feitas desta maneira. Houve situações de grande periculosidade, com tentativas de assaltos.
PL: E como você percebeu que se dá a ocupação da cidade? Onde está o grafite?
EG: O grafite está, justamente, nesses lugares onde, geralmente, o cidadão não entra. Os grafiteiros conhecem muito mais a cidade do que nós, porque a gente não frequenta muitos lugares ditos como perigosos. Eles sabem que determinados lugares são marginalizados, mas é exatamente nesse lugar marginalizado que o grafiteiro que tá trazendo ali sua intervenção, transformando esteticamente aquele lugar, e isso é uma das questões que eu tenho observado na pesquisa, e que é muito forte. Os do Brasil, de maneira geral, têm uma marca socioeducativa muito grande, que a gente não encontra, muito, fora daqui. Os grafites produzidos em outros países têm um intuito muito mais “artístico”, no sentido de “Eu produzi uma obra de arte”, pouco importa em que local, pouco importa quem são as pessoas que estão aí ao redor.
Gleisson Alves
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia - PPGLinC/UFBA, na linha História da Cultura Escrita no Brasil (HISCULTE). Formado em Letras Vernáculas (UFBA), Evanilton Gonçalves desenvolve, desde 2012, investigações científicas sobre práticas de letramento vernacular, tendo como objeto de pesquisa o grafite e, como sujeitos de pesquisa, os grafiteiros de Salvador. Em seu trabalho, compreende o grafite como uma prática de escrita multissemiótica, e é a partir dos registros nas ruas, mapeando a cidade, acompanhando o grafite e os grafiteiros, que seu trabalho vem sendo construído.
PET-Letras: Como se deu a sua pesquisa?
Evanilton Gonçalves: Então, eu acho que para falar sobre minha pesquisa eu tenho que falar, muito brevemente, de como tudo começou. Eu comecei a pesquisar o grafite aqui em Letras, em 2012. Eu tive a oportunidade de ser orientando do professor Antônio Marcos e, antes disso, eu não havia pensado nessa possibilidade de pesquisar o grafite aqui em Letras. Uma outra coisa que eu acho que é importante dizer é o porquê eu escolhi pesquisar o grafite aqui, e isso tem a ver, justamente, com a questão de uma escolha afetiva. Desde a minha juventude, eu lido com pessoas que produziam grafites nas mais diversas paredes e eu ficava fascinado com aquilo, eu cresci e me envolvi um pouco com esse movimento, o grafite. Eu frequentava eventos do movimento hip-hop, e o grafite é um dos elementos do hip-hop. Isso fez com que cada vez mais eu me aproximasse dessa linguagem ao ponto de passar até a produzir, em determinado momento, na cidade, mas por um momento muito curto. Depois veio trabalho, me afastei de tudo. Após um tempo consegui entrar na universidade, e até o quarto semestre não tinha ideia do que pesquisar, não era vinculado a nenhum grupo de pesquisa, e isto me causava uma certa angústia, porque eu via alguns colegas pesquisando e eu tinha interesse, mas não sabia qual caminho seguir. Até que surgiu a oportunidade, depois que fiz a disciplina com o professor Antônio Marcos, ele me convidou para ser orientando dele e para frequentar, como ouvinte, o grupo sobre letramentos, que era um que ele coordenava. Na época, ele estava vinculado ao departamento de linguística, e eu fui vendo o trabalho que alguns colegas desenvolviam na iniciação científica, até que eu fiquei pensando. Depois que eu li, e aí eu acho que uma questão muito importante, o livro Letramentos de Reexistência, da professora Analu – Ana Lúcia Silva Souza – foi que eu tive um insight, e eu falei: “Ó, eu posso pesquisar o grafite como objeto, em Letras, já que a professora trabalhou na sua tese a ideia do hip-hop como agência de letramento e ela explora todos os elementos do hip-hop”. Mas o foco dela na pesquisa foi o rap, o MC. Aí, eu falei “É, posso seguir esse caminho, então, de tentar dar conta de pensar um pouco mais o grafite, que é algo que me interessa”. Foi, então, a partir dessa leitura, dessa coisa embrionária de pensar o grafite como objeto de pesquisa que eu apresentei para o professor que, então, era meu orientador, e ele falou “Massa! Pense aí, tente escrever alguma coisa, vamos juntos pensando”. Enfim, a gente desenvolveu um projeto, e, a princípio, eu comecei a pensar o grafite como uma prática de letramento, ou seja, na minha iniciação científica, no primeiro ano, a minha ideia era tentar mostrar como o grafite era uma prática de letramento. A gente pensava diferentes conceitos de letramento, mostrando toda a polissemia que existe a respeito do termo, as confusões teóricas que ainda se faz e como ainda há vários objetos da cultura escrita marginalizados nos estudos sobre letramento. Um deles, obviamente, é o grafite; outro que é importante citar são os grafitos de banheiro, que inclusive uma amiga minha, Aline, pesquisa no mestrado agora comigo também. Então, veio da iniciação científica até o mestrado. E aí, nesse primeiro ano de iniciação científica, eu consegui a partir de diversos aportes teóricos, trazendo a própria Analu, Soares, Rojo, enfim, todos esses grandes autores que trabalham com a questão de letramento, pra mostrar como é possível identificar características e como é possível perceber o grafite como uma prática de letramento. No segundo ano de iniciação científica, e tanto no primeiro ano quanto no segundo ano, eu consegui ser bolsista de iniciação científica. No primeiro ano, via CNPq e, no segundo, via Fapesb. Então, no segundo ano, consegui dar andamento a essa pesquisa e pensar um pouco mais além. Pensar que o grafite não é simplesmente uma prática de letramento, mas ele é uma prática de letramento muito específica, que é a chamada prática de letramento vernacular, que é, justamente, um letramento que vai se contrapor aos letramentos que a gente, na academia, está familiarizado, que são letramentos institucionais. Os letramentos vernaculares são aqueles que não são regulados socialmente, eles têm uma regulação própria, têm uma lógica própria, mas não é uma instituição que vai regular o que deve ser feito, né, e por isso, obviamente, eles são marginalizados. O grafite é um exemplo disso, se a gente pensar aqui, mais amplamente, a questão dicotômica de diferentes linguagens, a gente poderia dizer que a pichação é também, embora seja uma questão polêmica, discutir o que é grafite e pichação. Eu vejo como práticas, hoje, diferentes. Embora antes pensasse como práticas iguais ou semelhantes, mas, hoje, eu penso que são práticas diferentes, mas que têm afinidades e distanciamentos, e, como eu disse também, os grafitos de banheiros, que são outros exemplos de letramentos vernaculares; e minha grande inquietação, na verdade, o que me fez pesquisar, durante esse tempo, o grafite, e inclusive o que me fez entrar no mestrado foi, justamente, perceber que há uma lacuna de pesquisa a respeito dessas escritas marginalizadas ou marginais, tanto aí pensando em marginais os seus autores quanto a própria prática em si, então, todas essas características fazem com que a instituição, a universidade, como um todo, não se debruce sobre essas práticas, ignore-as, totalmente. Nós somos permeados pela escrita, a escrita está por todos os lados. A gente sai na rua, a gente olha para um muro, tem um grafite, a gente olha pra frente, tem uma placa, por todos os lados a gente é permeado pela cultura escrita, e embora haja essa difusão toda de escrita, a gente... Como se os muros não tivessem escrito nada, né, como se não existisse o grafite. Então, a minha proposta, quando eu entrei no mestrado, foi dar continuidade, obviamente, a pesquisa que eu vinha desenvolvendo na iniciação científica e aprofundando a partir de um campo teórico muito específico. Eu ingressei no mestrado, aqui no programa de Língua e Cultura da UFBA, na área de história da cultura escrita no Brasil. E aí é interessante também, porque a minha inserção nesse grupo e o meu objeto de pesquisa são muito peculiares, pois todos os meus colegas estão se debruçando sobre testemunhos de escritos antigos – então, tem gente aí pensando século XVI, buscando fazer edições de textos antigos e tudo mais – enquanto eu estou na rua, né, registrando o grafite, mapeando a cidade. É um trabalho que conversa muito mais com a Antropologia, com a Sociologia, e aí uma outra questão importante: há muitas pesquisas sobre o grafite na área de Antropologia, Sociologia, Psicologia, Artes, mas não há, praticamente nada em Letras, embora seja uma prática de escrita multissemiótica. E esses são os motivos, também, que me fazem pesquisar o grafite, não só a questão afetiva, mas um caminho de pesquisa que se mostrou possível. Ao entrar no mestrado, na história da cultura escrita, eu passei a pensar como eu posso historicizar um pouco a respeito dessa história da cultura escrita, do grafite. Como eu posso mostrar que essa prática vernacular tem uma historicidade, tem determinados sujeitos que alimentam essa prática ao longo de anos e também mostrar quais são as características que se mostram presentes nessa prática aqui em Salvador. Porque o grafite de Salvador não é o mesmo de São Paulo, não é o mesmo grafite do Rio, tem aí uma relação muito forte com a questão da cultura, e que os sujeitos se embriagam da própria cultura. É muito evidente que o grafite produzido aqui em Salvador tem marcas de Salvador, por exemplo, como a gente tem as praias, é muito forte a presença de peixes e de sereias, esses personagens estão muito presentes nos muros da nossa cidade. Alguns sujeitos, que se apresentam enquanto grafiteiros, assumem determinadas identidades, através de pseudônimos, que são os nomes fictícios que eles criam para blindar a identidade. A sua identidade convencional, eu diria. De origem. O nome que eles assumem tem um certo significado. Foram vários elementos que eu fui percebendo, nessa pesquisa, desde 2012. E agora, o que eu tenho feito, basicamente, é alimentar essa continuidade na tentativa de aprofundar, um pouco mais, a respeito do que é o grafite. Pois, embora ele esteja bastante disseminado, na mídia, até como um objeto que a gente poderia dizer que tá na moda, em termos de apreciação estética, o grafite ainda é muito pouco conhecido em termos conceituais. Então, as pessoas olham pra uma expressão colorida e valorizam por ser colorida, mas se virem uma expressão monocromática, tendem a rechaçar. A questão dos nossos sentidos tem muito dessa relação, de como o grafite consegue seduzir muitas pessoas, a questão das cores vibrantes, etc. Embora as pessoas possam olhar pro grafite e não conseguir lê-lo totalmente, no sentido de dizer que texto tá escrito ali, porque realmente é difícil. Como você pode olhar pra elementos que fazem parte do grafite, como a tag, que são assinaturas dos grafiteiros e grafiteiras, e não consegue identificar aquilo ou achar que aquilo ali é só um rabisco, como as pessoas que não olham mais cuidadosamente tendem a dizer. Então, basicamente, o que eu faço é isso.
PL: Como é a sua relação com os/as grafiteiros e grafiteiras?
EG: Os sujeitos do grafite, os sujeitos envolvidos no movimento do hip- hop, em geral, rechaçam a Academia. Um dos problemas que eu tive foi como chegar nesses sujeitos, porque eu sou negro, sou periférico, morava no São Caetano, mas, na medida que eu me apresento como pesquisador, causa um distanciamento, e uma outra coisa, também, que foi muito importante pra mim, como eu disse, tudo isso começou de fato com a leitura do livro da professora Analu, porque sem ele eu, provavelmente, estaria pesquisando uma coisa diferente, foi perceber uma necessidade de assumir uma postura muito ética com esses sujeitos de pesquisa, e aí há uma diferença importante: eles não são objetos de pesquisa, eles são sujeitos. Uma outra questão é como dar uma contrapartida para esses sujeitos de pesquisa, porque eu vou ter o meu TCC defendido, como eu tive, vou ter minha graduação. Vou ter minha dissertação defendida, e vou ter o meu título de mestre. E o retorno, “Que retorno eu posso oferecer a esses sujeitos que colaboraram para a construção do meu trabalho?”. Pensando em tudo isso, desde o início, eu construí um blog, intitulado Letras nas ruas – letrasnasruas.com – e um Tumblr, com o mesmo nome. No blog, eu escrevo, semanalmente, a respeito do grafite, seja aqui na cidade ou de fora, faço resenhas de filmes, dou notícias de eventos, a respeito da prática aqui em Salvador, ou fora. Funciono como uma espécie de “jornalista do grafite”, como alguns já me chamaram. E isso foi uma coisa muito interessante, porque houve uma grande adesão, muitos citam o blog, compartilham e comentam.
PL: Sobre a experiência e o processo, nas ruas...
EG: Eu pensei em fazer mapeamentos em determinados bairros em que há uma predominância do grafite. Eu comecei no centro da cidade, percorri vários bairros do centro, andando, sozinho, com uma máquina fotográfica, apenas, registrando um por um dos grafites que eu encontrava, pensando numa trajetória comum: “Eu percorrendo determinado bairro, o que é que eu enxergo?”. Então, eu registro o grafite, tento identificar a autoria daquele grafite e o tipo de grafite. Eu procuro descrever, minunciosamente em que local ele se encontra, e em seguida, posto no Tumblr, que é uma espécie de rede social. Transformei esta plataforma em um acervo digital do grafite. Hoje, conta com mais de quinhentas imagens, sendo feitas desta maneira. Houve situações de grande periculosidade, com tentativas de assaltos.
PL: E como você percebeu que se dá a ocupação da cidade? Onde está o grafite?
EG: O grafite está, justamente, nesses lugares onde, geralmente, o cidadão não entra. Os grafiteiros conhecem muito mais a cidade do que nós, porque a gente não frequenta muitos lugares ditos como perigosos. Eles sabem que determinados lugares são marginalizados, mas é exatamente nesse lugar marginalizado que o grafiteiro que tá trazendo ali sua intervenção, transformando esteticamente aquele lugar, e isso é uma das questões que eu tenho observado na pesquisa, e que é muito forte. Os do Brasil, de maneira geral, têm uma marca socioeducativa muito grande, que a gente não encontra, muito, fora daqui. Os grafites produzidos em outros países têm um intuito muito mais “artístico”, no sentido de “Eu produzi uma obra de arte”, pouco importa em que local, pouco importa quem são as pessoas que estão aí ao redor.
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