Uma literatura afro-diaspórica na América Latina
Por Gleisson Alves
Com o processo de colonização que ocorreu em diversas partes da América Latina, muitos povos foram trazidos do continente africano. Tendo suas identidades violentamente rasuradas, precisaram encontrar formas para reexistirem (SOUZA, 2011) e se reconstruírem em territórios desconhecido; muito foi silenciado. Hoje, quando se tenta falar dessa sobrevivência, exalta-se dentro de uma ideia de latinidade apenas uma concepção de miscigenação, um lugar de festa, de comemoração; uma unidade que tenta ser capaz de abordar toda a complexidade existente. Porém, dessa maneira, a complexidade dos povos vindos de África termina sendo anulada e não lhes dá uma identidade que consiga representá-los. Portanto, não se pode, mais uma vez, olhar um continente sem perceber sua heterogeneidade e querer escrever dele uma história narrada por um viés único. Nas palavras de Coutinho (2010), lembramos que
[...] o próprio conceito de ‘América Latina’, que, pela sua pluralidade, requer constantemente um enfoque também plural, que reconheça as diferenças de ordem geográfica, linguística, etnográfica, cultural, econômica, etc., do continente, e busque dar conta dessa diversidade de maneira desierarquizada (COUTINHO, 2010, p. 126).
Em uma breve análise do percurso literário na América Latina, é possível perceber que o processo de colonização, por meio da exploração, estruturou características que, durante muito tempo, e até hoje, se encontram nas produções literárias. O Caribe é uma das regiões onde se concentra uma parte da população trazida, nesse processo, de muitos países africanos. Em sua obra Da diáspora: identidades e mediações culturais, Stuart Hall (2003) faz uma análise acerca da formação das identidades no Caribe após a colonização e afirma que “as identidades formadas no interior da matriz dos significados coloniais foram construídas de tal forma a barrar e rejeitar o engajamento com as histórias reais de nossa sociedade ou de suas ‘rotas’ culturais” (2003, p. 42).
Por muito tempo, as produções que pudessem evidenciar outras características que não fossem eurocêntricas eram invisibilizadas. A cultura oral, por exemplo, que esteve presente como meio principal na transmissão de conhecimentos e saberes dentro de comunidades indígenas e de muitas regiões africanas, sempre ficou em subcategoria, em grande parte da América Latina após a colonização.
Contra isso, a escrita de mulheres afrolatinas tem rompido portas e ganhado força como mais um grito de que ainda se luta, para reexistir (SOUZA, 2011). Essa escrita que não comunga dos artifícios esperado pelas estruturas hegemônicas, assume um lugar de afirmação. Assim como no Brasil, há uma luta por um reconhecimento de uma literatura negra ou afro-brasileira que
[...] ao procurar se integrar às lutas pela conscientização da população negra, busca dar sentido a processos de formação da identidade de grupos do modelo social pensado por nossa sociedade. Nesse percurso, se fortalece a reversão das imagens negativas que o termo ‘negro’ assumiu ao longo da história (FONSECA, 2006, p. 23-24).
Em toda a América Latina há um movimento que solicita visibilidade, não mais para a construção simplesmente de uma identidade que não atenda às demandas diversas, mas que denuncie um insucesso da tentativa do apagamento de uma história. Que revele um novo lugar na literatura, uma nova configuração na qual se está construindo uma voz que fala de se próprio. Desse modo,
[...] a necessidade de constituição de uma nova historiografia literária, isenta das distorções tradicionais, em que a noção de ‘grande literatura’ ou até mesmo de ‘literatura’ tout court, seja problematizada, se faz cada vez mais premente, bem como a urgência de se desenvolver uma reflexão teórica, que tome como ponto de partida ou de referência o corpus literário do continente (COUTINHO, 1996, p. 72-73).
Só ações como essas poderão impedir a permanência de apenas um único discurso literário que fala por ele e por todos os outros. Decerto que tal proposição, de um novo lugar na literatura e até mesmo do fortalecimento de uma literatura afro-latina, deva ser problematizada da mesma maneira em que está sendo problematizada o modelo hegemônico, pois a busca não é pela inversão de lugares, assim como não seria o ideal construir esse espaço pelo mesmo molde que se construiu o cânone.
A demanda atual requer muito mais um lugar de multiplicidade do que, simplesmente, de divergência. Não é uma condição de fácil resolução, pois a estrutura regente convoca um lugar central para as coisas, lugar esse que assume um poder em oposição ao diferente. Pleitear essa multiplicidade é também questionar essa estrutura e conseguir seria deslocá-la. Dessa forma, a escrita de minorias passa a assumir um papel ainda mais significativo, pois convoca essa reconfiguração, que se faz pertinente, na medida em que se têm muitas vozes silenciadas. Talvez por isso ainda seja um trabalho difícil, pelo qual as minorias lutam incessantemente para conquistá-lo. Muito já se conseguiu, porém ainda há um longo caminho para conquistar pelo menos uma situação menos violenta e mais confortável. Portanto, o fortalecimento de uma identidade literária afro-latina permite a constituição desse espaço, em que há a possibilidade de inserção de outros sujeitos.
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