Narrativas e memórias: representações e fragmentos do contemporâneo na América Latina
Por Priscila Machado
É indubitável a importância do boom latino americano − alguns críticos preferem chamá-lo de “Novo Romance Latino-Americano” (NRL) − como movimento que estabeleceu referência estética, cultural e política entre as décadas de 1960 e 1970. Dani Velásquez ressalta essa importância no seu artigo Para uma breve caracterização do Novo Romance Latino-Americano, no qual diz que
O escritor do NRL integra a fala popular no cenário romanesco, não como um narrador alheio à comunidade linguística que está retratando, mas de dentro sem cair na simples imitação, encontrando as possibilidades estéticas que estas formas idiomáticas podem oferecer [...] (VELÁSQUEZ, 2016, p. 19).
Esse episódio foi recorrente nas alegorias criadas por Garcia Márquez e Juan Rulfo nas narrativas que se passavam em Macondo e Comala (cidades literárias dos respectivos autores). Sobre tal questão, considero muito pertinente o comentário do professor e escritor mexicano Marco Aurélio que, em certa ocasião, disse: “No puede haber Macondo en Japón”. O realismo mágico não pretendia representar “mundos” jamais imaginados; a demanda era identidade, política e apropriação das vozes literárias que eram capazes de municiar, através de referências próprias e de personagens que se afloravam da nossa própria história.
Desde Cem anos de solidão, livro que para mim representa uma grande metáfora da história de “apropriação” da América Latina, posto que continuamos buscando novas formas de representação, agora com características outras e identidades diversas, nossa escrita vem sendo forjada por múltiplas facetas.
Assim, peço licença para exibir a memória como uma das especificidades que desenha, ou melhor, que, através de fragmentos, transita nos ecos deixados pela ditadura, na violência que elabora mosaicos estéticos por meio das narrativas contemporâneas. É preciso dizer, e agora por meio de “realismos” outros.
Como um dos “arquétipos” desse “corpo” refratado que é a nossa literatura, localizo-me no escritor e crítico literário chileno Alejandro Zambra, que se relaciona com a história do Chile por meio da elaboração de personagens que retomam em seu “corpo” essa relação com a memória, sobretudo quando o autor-personagem do romance Formas de volver a casa (romance do autor que destaco tal percepção) ficcionaliza sua memória pessoal.
Não obstante, a literatura de Zambra, em especial o romance em destaque, não trata de provocar uma catarse mnemônica através da tragédia, mas, sim, pensar como tornar subversivas essas cicatrizes que marcam o corpo, especialmente a memória de quem viveu em tempos de ditadura, de quem tem a consciência “tardia” de que viveu a ditadura e de quem não viveu a ditadura, embora sinta todos os impactos éticos e estéticos no discurso político (história e memória) e literário que se constrói ainda em tempos atuais. Sem falar no que compete pensar a possibilidade de entender a herança dessas posições no contexto que forma o presente do Chile.
Dessa forma, a narrativa vai sendo configurada uma e outra vez, como definiu Cortázar sobre a literatura latino-americana: “[...] una literatura que se sigue haciendo mientras hablamos de ella y que cambia y evoluciona dentro de un contexto histórico igualmente cambiante” (CORTÁZAR, 1980, p. 279)[1]. A fim de se tornar “imagética”, tal compreensão torna-se perceptível quando o personagem adulto, que antes era o menino, narra os efeitos das propagandas de Pinochet na sua infância:
[...] En cuanto a Pinochet para mí era un personaje de la televisión que conducía un programa de horario fijo, y lo odiaba por eso, por las aburridas cadenas nacionales que interrumpían la programación en las mejores partes (2011, p. 20-21)[2].
Nessa mesma sequência, o personagem demonstra como relacionava sua noção quando criança e como sua referência para a mesma situação se desloca para a configuração de uma memória que já se arranja afetada pela percepção do presente, quando diz que “Tiempo después lo odié por hijo de puta, por asesino [...]” (2011, p. 21)[3].
Desse modo, nessa imagem, elabora-se o exercício da memória no passado que se salienta no presente, causando uma notoriedade do acontecimento histórico que salta a narrativa, ou seja, a percepção do passado como lucidez para pensar o presente, uma vez que, quando o personagem adulto identifica Pinochet como “hijo puta”, essa imagem plasma a referência que elabora a escrita do personagem-autor. Vale ressaltar que o autor se utiliza do nome original do ditador, assim como de outros elementos na obra (nomes de ruas, lugares etc.), que também se configuram sob essa ordem.
Em outras palavras, é possível questionar: em que posição o autor que se faz personagem se coloca (e se desloca) diante dessa relação da memória com o presente? Sobre isso, percebe-se que o processo de escrita, tendo a memória como aspecto, tende a reconfigurar o presente através do ético e do estético, assim como predispõe questionar a relação entre história e memória. Como afirma Pierre Nora:
Memória, história: não são sinônimos de modo algum: na verdade, como já sabemos hoje, são opostos em todos os aspectos [...]. A memória é sempre um fenômeno atual, uma construção vivida em um presente eterno, enquanto que a história é representação do passado [...]. A memória orienta a recordação para o sagrado, a história expulsa-a: seu objetivo é a desmistificação. A memória surge a partir de um grupo cuja conexão ela estimula [...]. A história, por sua vez, pertence a todos e a ninguém, e por isso é designada como universal (1990, apud ASSMANN, 2011, p. 145-146).
Isso posto, o compromisso de construir a história através da ficção permite pensar a disposição de mostrar que existe algo diferente a dizer sobre uma história que já não é mais a mesma. No entanto, dar um passo à frente demanda, anteriormente, dar um passo atrás, e agora é possível fazê-lo sem medo. A imagem composta por “leer es cubrirse la cara. Y escribir es mostrarla” (ASSMANN, 2011, p. 66)[4] delineia, não só visualmente, o traço elementar da escrita de Zambra, que o coloca na posição de autor-personagem, mas também o revela como autor de uma narrativa que tende a fazer do movimento da memória um ato que dialoga com o contemporâneo, ou seja, “[...] é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” [...] (AGAMBEN, Giorgio, 2009, p. 59). Entretanto, não como um movimento que se aproxima de uma memória socialmente controlada e linear no seu processo de exposição, mas sim como arma dilatadora dos aspectos que precisam ser questionados, criticados e até mesmo compreendidos no âmbito corrente, gerando, para além da gramática estética da narrativa, um enredo que se faz como potência política.
Chacoalhar a história e romper com a “gramática” imposta é, a meu ver, a proposta de Zambra nesse romance, e a de muitos autores latino-americanos – como o mexicano Mario Bellatin, a brasileira Verônica Stigger, entre outros que se fazem sensíveis por meio da ficção as histórias de violência. Como falar linearmente dos processos de violência? Qual a importância de pensar a história por meio da literatura contemporânea na América Latina?
Em outras palavras, a relevância se coloca não só na valorização e questionamento da memória, mas também no ato de destaque das manifestações históricas que remontam a percepção atual do Chile e, porquanto, dos processos históricos da América Latina que, de maneira similar, se encontram, muitas vezes, ainda estilhaçados pela violência sofrida nos governos ditatoriais. Sendo assim, o que está em “jogo” não é mais o produto final da literatura, mas sim o processo, em múltiplas dimensões, que a constrói. Buscando nesses rumores formas múltiplas de recompor nossas faces, nossos corpos, como fragmentos, como porções e histórias que plasmam esse grande mosaico que é a nossa grandiosa América Latina.
[1] “[...] uma literatura que vai se fazendo enquanto falamos dela e que muda e evoluciona dentro de um contexto histórico em constante mudança” (CORTÁZAR, 1980, p. 279, tradução minha).
[2] Enquanto Pinochet era para mim um personagem da televisão que conduzia um programa de horário fixo, eu o odiava por isso, pelas tediosas transmissões nacionais que interrompiam os melhores momentos da programação (ZAMBRA, 2011, p. 20-21, tradução minha).
[3] Tempos depois eu o odiei por filho da puta, por assassino (...) (ZAMBRA, 2011, p. 21, tradução minha).
[4] “[...] ler é cobrir a cara e escrever é mostrá-la” (ASSMANN, 2011, p. 66, tradução minha).
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