Identidade nacional na pós-modernidade: um “se” reflexivo
Por Filipe Castro
Talvez uma das sensações de maior naturalidade para o indivíduo moderno seja a de pertencimento a algum lugar, mais precisamente, a algum país, a alguma nação. Não é só saber que se pertence a uma dessas instituições por questões óbvias ou jurídicas, como o fato de saber onde nasceu ou obter a nacionalidade de algum país que não é o seu de origem; é mais que isso. É perceber que, fazendo parte dessa ou daquela nação, faz-se parte também da sua lógica de funcionamento, de seus ritos, de suas formas de compreender o mundo, a vida, a humanidade, a ponto de isso gerar no indivíduo um dos traços mais "naturais" de sua identidade, tanto que, na maioria, se não em todas as línguas, a forma que se encontra pra falar a respeito desse sentimento é através do verbo "ser": eu sou desse ou daquele lugar.
A era moderna lidou com esse sentimento com bastante tranquilidade: o indivíduo nascia em um lugar e "era" de lá, pertencia a esse lugar, tanto que é justamente nesse período que surgem, em diversos momentos e por diversas razões, os movimentos ufanistas, nacionalistas, totalitários e fundamentalistas. Já no período seguinte, que possui várias designações (pós-modernidade, contemporaneidade, modernidade tardia) essa questão já não é mais tão simples.
De modo geral, à medida que algumas dessas estruturas vão sendo questionadas, vão-se descortinando não só conceitos bastante densos a se definir, como o próprio conceito de nação, mas o papel do indivíduo nesse processo de criação de uma identidade nacional, o papel da narrativa da história nesse processo e, principalmente, o interesse por traz da criação dessa narrativa, questão essa que leva o tema também a lugares políticos e ligados ao interesse de dominação.
Um dos nomes mais interessados nessas questões, mesmo que as utilizando para compreender a formação da identidade, ou das identidades, de cada sujeito, é o de Stuart Hall, que, além de levantar questionamentos fundamentais para pensar tais questões, delimita o que, para ele, são os pontos que estruturam a ideia de perticimento, do ponto de vista da identidade nacional, e mostra como, na verdade, esse processo de formação identitária tenta, sempre, criar uma homogeneização, mas, por vezes, na pós-modernidade, falha.
Em seu livro Identidade cultural na pós-modernidade, Hall dedica um capítulo inteiro para pensar tais questões, se preocupando em, basicamente, três coisas: mostrar o que era, até então, a ideia de nacionalidade, situando-a como algo tipicamente moderno, mostrar quais os (cinco) pontos que estruturam esse raciocínio, ou sensação, mostrar como, na pós-modernidade, essa ideia se desestrutura e como, apesar de ser a base do ideal, a homogeneização não é, ou não é mais, possível dentro dessa lógica de formação identitária.
O primeiro grande ponto que parece mudar do período moderno para o pós-moderno (por questões de ganho de espaço-tempo, adota-se esse termo), sendo o que motiva o título deste texto, é a noção de que o próprio sujeito contribui na criação daquilo que ele vai se identificar posteriormente. Por isso a semelhança com o "se" reflexivo da língua portuguesa: um elemento que sofre a reação gerada por uma ação tomada por si mesmo. Para Hall, através da narrativa histórica do povo que habita determinada região, pelos hábitos, pelas manifestações culturais etc., o indivíduo contribui para a criação de todo um sistema de movimentos, invenções, posturas e sensações que, quando interpretadas, e aí reside um grande problema, criam, inventam um "algo" que será sentido como particular daquele povo. E este último, posteriormente, se sentirá parte desse todo, estranhamente sem a lembrança de que ele é um dos agentes de criação de toda essa estrutura, restando, apenas, o reconhecimento e a sensação de pertencimento.
O "grande problema", citado acima, diz respeito à leitura e, consequentemente, à imposição do recorte histórico-cultural que será passado para uma infinidade de gerações, como particular desse ou daquele povo. Por outra questão de espaço-tempo, não há como abordar todos os pontos que, para Hall, constroem a ideia de identidade nacional, até porque não é interesse deste texto analisar o livro citado, por isso a abordagem de apenas alguns pontos para discutir a questão. Sendo, a narrativa histórica e cultural, duas das questões cruciais para a formação desse imaginário nacional, está presente nessa formação a ideia de narrativa, já que é através da narrativa histórica, além da prática repetida, que estas produções culturais chegam às gerações futuras. Sabe-se, no entanto, que esse processo de construção da narrativa histórica implica, necessariamente, a ideia de seleção do que vai compor a narrativa, portanto priorizando determinados recortes e, consequentemente, apagando outros.
Não se pode cair no erro de pensar que a quantidade de narrativas e de pontos de vista, por si só, impossibilita uma atitude diferente desta de seleção. Seria um posicionamento bastante ingênuo ou inescrupuloso. O cerne do problema é justamente o interesse (palavra crucial para este raciocínio) em priorizar um ou outro recorte, povo, manifestação cultural, momento histórico e, além disso, interpretá-lo, no lugar das milhões de outras pessoas que constituem o povo em questão, como "característico, intrínseco deste povo", passando, ainda não satisfeitos, essa ideia interessada, excludente e violenta para, como já dito, uma nfinidade de gerações.
É justamente esse movimento e a percepção dos silenciamentos realizados pela história que geram as sensações de não-identificação e, consequentemente, de desconstrução da ideia de identidade nacional, tal como na modernidade, presentes na pós-modernidade . É pensando desta forma que o mesmo Identidade cultural na pós-modernidade começa a entender o descentramento do propósito homogeneizador dessa construção identitária, mostrando que, à medida que o sujeito pós-moderno começa a tomar posse dessa percepção e, muitas vezes, se enxergar dentro daquilo que foi selecionado a ficar de fora, ele começa, também, a questionar esse traço de identidade.
Diversos outros aspectos perpassam a ideia de identidade nacional e, principalmente, sua desconstrução (como a ideia de "povo puro e primordial" ou a possibilidade de um sujeito não se identificar culturalmente com a nação á qual nasceu e, no entanto, se sentir parte de um outro conjuto de práticas culturias, de outro lugar), no entanto, é fundamental perceber a mudança não só do raciocínio, mas do jeito de pensar do período pós-moderno, e compreender que não há nada mais natural do que haver uma mudança tão profunda da forma de viver, gerando outras formas de pensamento e maneiras de enxergar questões tidas como "pacíficas", até então. Há inúmeros sujeitos para os quais pensar o mundo, a identidade e os próprios sujeitos desta forma é de fundamental importância, percebendo, antes de tudo, que a história e as nações entendidas como foram até hoje, não dizem de sujeitos, de culturas e de identidades, mas de certos sujeitos, certas culturas, certas identidades, nas quais, por diversas vezes, eles não se encontram. Essa nova lógica de raciocínio está posta, e não há mais o que fazer diante disso, apenas avançar.
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