Gênero: identidade ou mecanismo de opressão?

Por Ludmila Rodrigues

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Diante da proposta deste texto de relacionar gênero e identidade, ou melhor, tratar do gênero enquanto identidade, o que eu vou fazer aqui, como mulher feminista que partilha da visão materialista de gênero, é uma comparação entre duas visões de gênero distintas, a fim de esclarecer suas semelhanças e diferenças, não sem, é claro, me posicionar diante do debate que essas duas definições contrárias geram.


A primeira definição, defendida pela política queer, trata o gênero como uma posição do indivíduo dentro de um espectro cujas duas pontas seriam, respectivamente, os gêneros masculino e feminino. Nela, cada pessoa possui uma identidade de gênero caracterizada pela posição ocupada dentro do espectro em questão, de maneira que sexo e gênero não estão necessariamente ligados. Para isso, determinados indicadores são escolhidos e usados na relação entre esse indivíduo e a sociedade,  sendo tais indicadores peças-chave na definição da maneira como um sujeito é percebido por outro – se enquanto homem ou enquanto mulher. Esses indicadores podem estar, por exemplo, relacionados a comportamento, estética ou podem ser até mesmo existir em forma de pronomes de tratamento.


De acordo com a teórica estadunidense Judith Butler, que, diante da contraposição entre as duas visões polarizadas de gênero, deve ser encaixada como partidária da primeira delas, embora a) tal definição tenha sido posta aqui de maneira genérica para fins didáticos e b) a própria Judith Butler não se identifique como teórica queer, apesar de ser recorrentemente relacionada à dita política,




gênero é uma escolha, ou gênero é um papel, ou   uma construção que alguém usa como alguém veste roupas de manhã, na qual existe um ‘alguém’ que é prioritário em relação a esse gênero, um alguém que vai até o armário de gêneros e decide deliberadamente que gênero será hoje (BUTLER, 1996, p. 35)



A segunda definição vê o gênero como um sistema hierárquico que mantém a subordinação da fêmea como categoria ao macho através da força. Nesse sistema, o patriarcado é privilegiado e usa da violência para dominar e oprimir a categoria “mulheres”. O gênero aqui não é voluntário e fluido (que pessoa escolhe ser subordinada?), mas construído socialmente, ou seja, pela sociedade patriarcal, através da socialização do indivíduo. Segundo a Coletiva Feminista Radical Manas Chicas, no texto O que é o feminismo radical?, retirado do blog da Coletiva (2015), o sistema de gênero é um




dispositivo ideológico do sistema patriarcal, pois serve para dar respaldo, justificar e naturalizar a dominação sobre as mulheres; nesses termos, o sistema de gêneros age no sentido de essencializar uma suposta diferença sexual, absolutamente necessária à manutenção das relações de exploração, e à qual liga-se não apenas a exigência de que sejam cumpridos estereótipos correspondentes a cada sexo – por exemplo, mulheres têm de nutrir posturas subordinadas, passivas e condescendentes, ao passo que homens são autoafirmativos, expansivos e agressivos – mas também a de que se cumpram determinados tipos de relação entre eles. Defendemos que esse sistema demanda muito mais do que somente atitudes de indivíduos, como se deles cobrasse uma simples “performance” ou “identidade”; ele mantém um sistema de dominação.



 Ora, fica, então, bastante clara a polarização das visões expostas: enquanto uma trata o gênero como uma escolha individual, reivindicando, assim, a existência de um sem-número de “identidades de gênero”, a outra trata o gênero como uma imposição patriarcal através da qual se mantém a dominação, a exploração e a opressão às mulheres – que já não são tidas como um gênero, mas como uma classe sexual –, sendo a favor da abolição do gênero, ou seja, considerando zero o número ideal de “identidades de gênero” existentes. Enquanto uma crê possível o gênero como performance, a outra defende a existência de uma estrutura interessada na manutenção desse sistema como instrumento necessário à continuidade da hierarquia de poder entre homens e mulheres.


Como partidária da segunda visão, acredito que existem aqui duas questões às quais se deve prestar atenção: (a) a socialização precisa ser levada em conta e (b) a abolição do gênero beneficiaria a todos os indivíduos da sociedade – incluindo aqueles que se “identificam” com um “gênero” distinto do correspondente às genitais – porque abolir o sistema de gênero é tão-somente destruir a necessidade de se encaixar em padrões comportamentais pré-concebidos. Mas vamos por partes: Em que consistiria a socialização por vezes aqui mencionada e como esse conceito se relaciona com o tema em questão?


A socialização consiste no fato de o indivíduo, macho ou fêmea, ter a ele atribuído um determinado papel – de homem ou de mulher, a depender do seu sexo biológico – desde que nasce e é posto em contato com a sociedade. Esse papel imposto aos indivíduos pela sociedade[1] é baseado em estereótipos estéticos e comportamentais, são os “padrões pré-concebidos” mencionados no parágrafo anterior. Por exemplo, se um indivíduo nasce com pênis, a sociedade, desde seu nascimento, vai esperar dele e determinar a ele um papel social masculino, como brincar com carros em vez de bonecas quando criança se portar de maneira segura, decidida e vigorosa diante de problemas cotidianos, com o passar do tempo, e não usar vestidos e maquiagem, já que não são itens indicadores de “masculinidade”, mas de “feminilidade” e, portanto, próprio das mulheres – essa é a socialização masculina, e todos os indivíduos nascidos com pênis, de acordo com a sociedade em que vivemos, devem se encaixar no papel que é designado a todo aquele que é homem; destoando dele sempre for um pouco mais sensível, delicado, indeciso. Já do indivíduo que nasce com uma vagina, por conta e através da socialização feminina, espera-se o encaixe em outro papel, o “feminino”: orelhas furadas ao nascer, a presença de características como delicadeza, vaidade e instinto de cuidado e a utilização de brinquedos como bonecas e instrumentos que façam referência à vida de dona de casa[2] são alguns exemplos dos requisitos necessários. A socialização feminina, no entanto, é absolutamente mais cruel e violenta do que a socialização masculina, porque o gênero feminino é interiorizado pela mulher a partir de uma educação que visa à sua inferioridade diante do gênero masculino, uma vez que a “feminilidade” nada mais é do que um arsenal de rituais que servem para demonstrar submissão ao macho – gosto muito de uma frase da escritora Daniela Bado, publicada em 2015 em uma de suas redes sociais, que diz: “Quando um homem reclama que uma mulher está sendo muito agressiva, na verdade está dizendo que ela não está sendo submissa o suficiente”.


Quando alguém se comporta diferentemente do esperado em termos de gênero, isso jamais passará batido aos olhos da sociedade; essa pessoa será vista como um sujeito atípico, simplesmente porque ele não aceita amoldar sua personalidade a um papel arbitrário e estereotípico. De que maneira a abolição dessas “caixas” chamadas gênero podem ser prejudiciais às pessoas que não se identificam com elas? Todo o contrário: essas pessoas deveriam lutar pelo fim de um sistema que aprisiona sua existência enquanto ser humano. Esse é um ponto importante na defesa da abolição do sistema de gênero: é importante perceber que destruir uma estrutura social que violenta, inferioriza e oprime as pessoas que nasceram com uma vagina traz como único prejuízo àquelas pessoas que não nasceram com uma vagina a perda de privilégios e domínio em relação às pessoas nascidas com vagina – com o perdão pela repetição. Se você não tem interesse na manutenção desse privilégio hierárquico, você simplesmente não vai ser prejudicado. Como afirma Jennifer Nummi, em seu texto “Combate à transmisoginia” (2014), retirado do blog da autora:




Não ter um gênero significa não se deixar conformar por modelos comportamentais pré-estabelecidos, limitadores, castradores, ditatoriais, totalitaristas, [...] inerentemente violentos e negativos, porque são formas de controle social, de padronização dos comportamentos e das mentalidades. Não ter um gênero quer dizer transcender, ir para além [sic] de amarras a roupas, gestos, andares, falares, gostos, nomes, banheiros, valores e assim por diante que, compulsoriamente, precisariam ser adotados para a aceitação social como mulher ou homem. É não ter medo de ser quem se é, estética e comportamentalmente, independente de ser “aceit@” como isso ou como aquilo pelas observadoras e observadores.



 O problema de entender o gênero como performance consiste principalmente no fato de que a socialização não pode ser apagada da história de cada indivíduo. Eu, como mulher, não posso negar ou fingir que eu jamais fui violentada por ser mulher e que o fato de ter nascido com uma vagina me fez ser desprivilegiada diante daqueles que nasceram com pênis; assim como não faz o menor sentido que você, homem, detentor de todos os privilégios que um homem possui diante de uma mulher alegue que esses privilégios não existem ou, ainda, que existiram mas você quer abrir mão deles. Se um homem casado e uma mulher casada disputam por uma mesma vaga no mercado de trabalho, por exemplo, muito provavelmente o homem é que será contratado, uma vez que a possibilidade de gravidez da mulher faz com que o empregador evite ao máximo empregar mulheres, por conta da licença-maternidade e consequente queda no rendimento da empresa – e aqui temos uma série de outras questões a serem problematizadas, como, por exemplo, o papel desempenhado pelo sistema capitalista diante da opressão às mulheres e a disparidade existente entre pai e mãe, no que diz respeito ao cuidado à criança. Querer abrir mão do privilégio é legítimo, mas impossível, porque é estruturalmente muitíssimo mais complexo. Como branca, não posso simplesmente decidir que quero abrir mão dos privilégios que tive até aqui diante de uma negra, porque isso consistiria em mudar parte do que já tenho incorporado em mim, como o aprendizado adquirido acerca do que quer que seja devido à facilidade de estudo, por estudar em escola particular, ter comida na mesa no horário certo, brincar em vez de trabalhar etc.


Gênero não é sentimento, é engrenagem de opressão. Ele não vem de dentro de cada um de nós, mas de uma sociedade formada com base no poder dos homens sobre as mulheres. Nada é essencialmente feminino ou masculino, nenhuma roupa, brinquedo, comportamento, característica pessoal: isso nos foi imposto interessadamente. Tratar o gênero, portanto, como algo inerente ao ser humano é servir a um sistema perverso que violenta, coage, estupra, silencia e mata mulheres todos os dias.


Nota: O texto em questão, assim como os demais, é de inteira responsabilidade do autor, não representando, portanto, o posicionamento do grupo.     


[1] Tratamos aqui de uma cultura dominante, mas é importante dizer que tais papéis variam de cultura para cultura, de maneira que existem culturas ocidentais que não podem ser representadas pela cultura dominante, assim como existem culturas orientais que o são.


[2] Os brinquedos são um claro indicador de quão mais violenta é a socialização feminina em relação à masculina. Enquanto meninos ganham carros, aviões, jogos de tabuleiro e quebra-cabeças, meninas ganham bonecas para vestir, bebês para cuidar, panelinhas, casinhas e cozinhas em miniatura etc. Os brinquedos dos meninos auxiliam na construção de uma personalidade enérgica e resistente e no desenvolvimento de uma visão dinâmica e sagaz, enquanto as meninas são preparadas para serem mães e donas de casa.


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