Entrevista com a professora Lívia Natália

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Por Isadora Matos

Procurar entender como nos definimos sempre foi uma preocupação de estudiosos de diferentes áreas em diferentes momentos da história. Na contemporaneidade, segundo Stuart Hall, o sujeito é visto através do olhar da multiplicidade, constituído por múltiplas identidades que se organizam por um viés histórico e não biológico e que estão suscetíveis à mudança. A concepção de um sujeito racional, unificado e contínuo torna-se insustentável, pois o momento histórico da contemporaneidade já não possui relações sociais e institucionais estáveis que garantem a conformidade do sujeito. O que parecia ser intrínseco e imutável, hoje se configura no terreno da contingência. Sendo assim, as lógicas simplistas e contínuas para entender identidades nacionais, de gênero, de raça, de sexualidade etc. são cada vez mais questionadas. Como faz Judith Butler em Problemas de gênero, ao discutir a relação entre gênero, sexo e desejo sexual e sua aparente continuidade.


Esses teóricos abrem espaço para novas possibilidades interpretativas do que é ser mulher, ser brasileiro, ser negro, ser homossexual etc. Na entrevista que segue, a professora doutora Lívia Natália[1] nos ajuda a compreender melhor o pensamento dos teóricos supracitados, além de abordar algumas situações do contexto nacional relacionadas à questão da identidade.


PET-Letras: Recentemente o rapper Emicida foi acusado de machismo ao escrever a canção intitulada Trepadeira. Em uma nota no Facebook, o artista pede desculpas às militantes feministas e se defende ao afirmar o caráter ficcional da canção e indicando que ele, como artista, e como muitos outros antes dele, escreve sobre essa temática, mas não necessariamente legitima esses discursos. É possível falar de uma contradição de identidades nesse caso, já que além de poeta, o rapper é negro e se considera feminista?


Lívia Natália: Acho que você tem aí um bolo de problemas, não é? Primeiro que é muito complicado esse lugar de um homem que se diz feminista. Porque o feminismo, você pode até estar, vamos dizer assim, afim à causa. Você pode até ter um interesse, uma contaminação, um comprometimento com a causa, mas se ele fosse feminista ele não faria essa música. Ponto. Então existe um problema que é o seguinte: o sujeito que está potencialmente do lado do opressor, ele não pode em momento nenhum se identificar com o lado do oprimido sem estar sendo opressor. Entende? Não tem como o homem dizer “eu sou feminista” sem que isso já seja um gesto de opressão. Então é muito mais interessante reconhecer a limitação do seu lugar. Por exemplo, se ele realmente fosse um sujeito que ocupasse uma postura feminista, nem passaria pela cabeça dele fazer uma música em que a mulher estivesse numa lugar de subjugação, de exposição, de qualquer nível de violência. Então a questão não é nem o choque de identidades aí. A questão é simplesmente: um sujeito que ocupa um lugar de privilégio, que é o lugar do masculino hegemônico numa sociedade machista, exercendo o seu lugar. Seria muito mais coerente ele simplesmente pedir desculpas, não se assumir feminista e compreender a limitação do seu lugar de fala, porque todo lugar de fala, independente de qual seja, ele tem limitações. Não é toda mulher, por exemplo, que vai ser feminista. A gente sabe muito bem disso. Não necessariamente porque se é mulher, se tem um discurso em defesa dos direitos ou das necessidades das mulheres. Então não existe lugar nato, mas também eu não posso querer dizer que homem é capaz de falar pelas mulheres, ele pode até falar com as mulheres, em conjunto, mas falar por elas não, porque você cai em incidentes, em absurdos de representação como esse.


PL: Em Problemas de gênero, Butler fala sobre a performance repetida, na qual gênero, sexo e desejo sexual deveriam estar em continuidade para serem legitimados. Poderíamos dizer que essa forma de se pensar a identidade de gênero está em discordância com o modo de se pensar a identidade cultural na pós-modernidade?


LN: Não em discordância, mas simplesmente num outro tempo. É uma outra forma de pensar. Hall defende uma lógica da fragmentação, da descontinuidade. A ideia não é que você seja uma determinada coisa, mas que você tá dentro de uma possibilidade... Você passa por processos de identificações, não de identidades fixas e imutáveis. A lógica de Butler é diferente. A lógica de Butler é você compreender que entre esses dois elementos existe um discurso que pode se dar em continuum. Existe um discurso que precisa ser de via de mão dupla, não necessariamente gênero, sexualidade e vivência sexual vão ser sempre numa única direção. A vivência sexual e a vivência de gênero elas não são biológicas necessariamente. A biologia não é destino necessariamente. Então quando a gente pensa isso via Hall, o Hall vai falar de uma identidade antes que a gente consiga chegar a essas reflexões de Butler, por mais que sejam textos que mantêm uma certa contiguidade temporal, mas são duas visões completamente diferentes. A visão de Hall está buscando quebrar com a lógica de uma identidade fechada, completa, acabada. Butler já operando via psicanálise, já operando via discursos de descontinuidade completa, busca cindir com a própria noção de um gênero fechado, acabado, de uma subjetividade sexualizada, de um lugar estagnado. Eu me lembro que quando eu comecei a ler Butler, eu disse assim: “Meu Deus do céu, até ontem eu achava que eu era mulher”. E ela coloca em questão tudo isso. Ou seja, não existe nem a possibilidade da identificação, o que existe é uma vivência de corpo, é uma intensidade que é de corpo. Eu me lembro muito nesse sentido de uma decisão recente, foi no ano passado, de uma juíza que autorizou que uma mulher, que era trans, pudesse denunciar o marido na Lei Maria da Penha. E por que que ela pôde fazer isso? Porque o que estava em questão ali não era se era um homem que tinha peito, não era se era que se que vestia de mulher, não era um homem vestido de mulher que sofreu uma violência do seu companheiro. O companheiro só se sentiu à vontade para impingir a violência a sua mulher porque ela estava na condição de mulher. Estava no lugar-mulher. Então se a gente vai por uma lógica de uma sociedade dividida por identidades, eu vou querer ser essencialista a ponto de dizer: mas ele não tem útero; aquele peito dele ali é uma construção; ele tem pênis e isso determinaria que ele é um homem e que, portanto, teria a mesma força física, inclusive, de reação em relação a esse outro homem que o agrediu. Só que eu não posso imaginar as coisas dessas maneiras tão estanques: ele tem pênis, ele não tem útero, aquele peito é uma construção. No entanto, naquele momento, ele foi agredido porque ele estava no lugar-mulher, ele estava no lugar subjetivo, no lugar de vivência de um feminino, isso fez com que esse homem se sentisse a vontade para agredi-la.


PL: Pensando em identidade nacional, o Brasil acaba sempre reconhecido pela receptividade das pessoas, pelo paraíso das festas e mulheres bonitas e pela corrupção (o famoso jeitinho brasileiro). A crise econômica e, principalmente, política que o país enfrenta hoje retoma a defesa do discurso da corrupção como um traço brasileiro. Problematizo o assunto ao citar Hall, quando ele diz que as identidades nacionais são como comunidades imaginadas, discursos de continuidades entre passado e futuro. Como não cair na tentação de abordar uma visão estereotipada do brasileiro em tempos de lava-jato?


LN: Eu não concordo que exista um reforço da ideia do jeitinho brasileiro ou de que o brasileiro é um povo necessariamente corrupto que viva de pequenas corrupções. Essa imagem já foi muito mais forte. Hoje a sensação que eu tenho, e que talvez seja uma sensação que as gerações mais jovens não experimentem, é uma sensação de que tudo aquilo que se passava por debaixo do pano hoje veio pra superfície, hoje veio pra todo mundo ver quem é que tá roubando, quem foi que delatou, tá saindo no jornal. Por mais que essas revelações não sejam homogêneas o tempo inteiro, você tem uns que são mais alvo do que outros, mas isso é dito. Talvez a gente tenha tido um grande ponto de virada nisso com o impeachment de Collor. Quem vivenciou o processo de impeachment de Collor tem uma sensação que desde então o país ficou menos tolerante a roubo, menos tolerante a isso que é uma violência também, que é você surrupiar da população, que é você desviar dinheiro de merenda escolar, desviar dinheiro de saúde etc. Então nós vivemos num país muito denuncista, de alguma maneira nós estamos o tempo inteiro dizendo o quê que tá acontecendo, vira e mexe você tem alguém que até vinte anos atrás, trinta anos atrás não passaria por um processo de linchamento público passando por linchamento público, sendo exposto, preso. Políticos presos... Um Delcídio Amaral da vida, preso. Vai fazer o quê? Quase três meses. Por corrupção, por obstrução à justiça, essa coisa toda. Então isso pode dar uma sensação de que nós estamos mais corruptos, mas eu não sinto que seja uma sensação verdadeira. Eu sinto que é muito mais uma sensação de que agora, nos últimos dez, vinte anos, isso tem vindo à tona com mais energia e isso tem deixado essas veias mais expostas. Coisa que não acontecia antes. Antes era um sistema... Para você ter ideia, a gente tem sensação de que qualquer político, enfim, qualquer um que seja corrupto, ele toma muito mais cuidado. Ele tem muito mais medo porque sabe que a possibilidade de ser descoberto é muito grande. Em qualquer ambiente, né? A possibilidade de ter uma câmera filmando, alguém gravando o telefonema, um grampo em um telefone é muito grande. Então eu acho que isso não reforça a imagem de um país corrupto necessariamente. Isso é a visão de uma direita que o tempo inteiro fez das suas e nunca foi revelado, nunca foi dito, nunca foi publicizado. Então o que eu penso é que na verdade o que a gente tem é um contexto de país em que a gente consegue de alguma maneira flagrar essas cenas de abuso, de roubo, de violência de uma maneira muito mais sistemática e muito mais, vamos dizer assim, descentrada de apenas um lugar, de um sujeito. Essa semana eu vi em algum lugar uma mulher dizendo assim, que aqui no Brasil só fica preso quem é preto ou pobre. Isso ainda é uma verdade. Isso ainda é uma coisa sobre a qual a gente precisa pensar nesse país, porque você tem aí as grandes fortunas, os grandes ladrões, os grandes corruptos que acabam que passam um tempo ou outro na cadeia e daqui a pouco todo mundo esquece, daqui a pouco está tudo bem, vide Dona Daluz que fez um processo de sonegação de impostos e passou um bom tempo imune a isso. No entanto, a exposição e enxovalhamento público é alguma coisa que é pedagógico também no nosso país, é uma coisa que é bastante pedagógica. Não que esteja resolvido de maneira nenhuma.


PL: Enxergar o sujeito por uma perspectiva múltipla e móvel contribui para uma mudança de olhar em vários campos de estudo. Pensando no contexto da teoria literária, como isso pode afetar as pesquisas e as produções acadêmicas na área?


LN: A teoria da literatura sempre foi um campo disciplinar que esteve muito refratário e cego às diferenças. É um campo que se constrói o tempo inteiro a partir de uma lógica canônica de representação e se comportando como se a literatura não fizesse parte de um bojo que é político, que é social, que passa pelo financeiro, que é atravessado por várias questões que não são apenas o belo ou estético. Então quando a gente pensa esse contexto de emergência não apenas da diferença, mas uma emergência de uma demanda de um discurso que pense essas diferenças, a gente encontra a teoria da literatura numa sinuca de bico. Ou ela vai se dedicar a pensar nesses discursos de minorias – de negros, de homossexuais, de mulheres, de crianças, de velhos. Ou você vai pensar nesses outros discursos literários ou você vai ficar estudando o quê? Ou você vai ficar a vida inteira ligado a um cânone, que assim, tudo bem, todo mundo ainda vai ler objetos canônicos, no entanto, esse cânone é continuamente atualizado por outros discursos. Então a teoria vai se condenar a ficar eternamente desatualizada? Fora do tempo em relação a tudo que se constrói no que se diz respeito à literatura? Eu sempre gosto de dizer que é teoria da literatura, então a teoria tem que se colocar, se dobrar ao objeto literário, não o contrário. Não é a literatura que tem que se comportar para ser estudada pela teoria. É a teoria que tem que se dobrar àquele objeto que ela quer estudar. E cada vez eu vejo isso de maneira mais forte, porque cada vez eu vejo uma reflexão diferente sobre a noção de intelectual contemporâneo, uma noção diferente sobre a questão do escritor contemporâneo e como pensar os textos literários, os discursos vários, de como eles se comportam, de como eles podem ser estudados, quais são as vias de acesso possíveis para você acionar um texto literário que não sejam sempre os mesmos caminhos óbvios, da metonímia, da alegoria, da melopeia, da fonopeia, da logopeia. Quais são as outras formas de dizer que a literatura inaugura na contemporaneidade? Porque a gente também não pode imaginar que a gente vai usar as mesmas noções, os mesmos conceitos, as mesmas metodologias de análise a vida inteira e que elas vão sempre dar conta do literário, porque isso significaria, portanto, que a literatura não se modificou em nada, não avançou em nada, não se repensou de maneira nenhuma, enquanto obra de arte, a literatura ela se repensa continuamente. Então eu acho que cabe a uma teoria da literatura contemporânea pegar aquilo que Evelina vai chamar de crise no texto dela e que Eneida Maria também vai falar de que existe uma crise instaurada dentro do bojo do estudo de teoria e entender a crise no sentido nietzschiano mesmo, do caos nasce as estrelas. O que eu posso repensar a partir dessa ideia de caos? Qual é a nova ordem que se inaugura no caos? Eu acho que isso faz com que a gente possa continuar a pensar e produzir teoria da literatura. Não necessariamente nos tornando culturalistas, porque os estudos culturais são uma outra área de conhecimento, com outros instrumentais, mas desenvolvendo instrumentais de dentro da teoria, ainda que em diálogo. Até porque a teoria da literatura é um campo disciplinar, que é extremamente múltiplo, ela não nasce de um lugar específico, ela nasce da psicanálise, da filosofia, da filologia, da história, das ciências de maneira geral. Então, respeitando esse vigor pós-disciplinar da teoria, pensar como é que a teoria pode se organizar diante das novas demandas que a literatura tem na contemporaneidade.


[1] Doutora em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura, coordena o grupo de pesquisa Derivas da Subjetividade na Escrita Contemporânea na Universidade Federal da Bahia. Além de acadêmica, Lívia é poeta, possuindo duas publicações: Água negra (2011) e Correntezas (2015).

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