O útero de Angélica Freitas

Angélica Freitas, em seu Um útero é do tamanho de um punho, publicado em 2013 pela editora Cosacnaify, aborda, com bastante precisão e crueza, questões fundamentais em nossa sociedade atual, tendo como base a posição da mulher contemporânea – posição em que ela se vê, posição em que é vista. Dividida em sete partes, a obra traz em seus poemas críticas mordazes a comportamentos ainda vigentes – mas não por isso aceitáveis. Muitos são os aspectos potencialmente discutíveis no livro, sejam eles referentes ao conteúdo, sejam referentes à estrutura textual. Me atenho, no entanto, à questão geral e mais perceptível: a crítica ao machismo e comportamentos por ele gerados. Ainda assim, de maneira rasa e breve, tendo em vista a proposta de nosso texto.


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Já no primeiro poema, que abre a seção Uma mulher limpa, Angélica apresenta o estereótipo imposto à mulher, que engloba características como delicadeza, higienização e doçura: “[...] há milhões e milhões de anos/pôs-se sobre duas patas/a mulher era braba e suja/braba suja e ladrava/porque uma mulher braba/não é uma mulher boa/e uma mulher boa/é uma mulher limpa/há milhões, milhões de anos/pôs-se sobre duas patas/não ladra mais, é mansa/é mansa e boa e limpa” (p. 11). A crítica mais do que legítima aos padrões estereotípicos impostos a nós, mulheres – que devemos ser limpas, bem cuidadas, delicadas, dedicadas, amáveis, boas mães etc. – é complementada com a crítica à gordofobia, que aparece mais adiante, ainda na primeira parte do livro, quando a imagem de uma mulher gorda é associada à sujeira: “uma mulher gorda/incomoda muita gente/uma mulher gorda e bêbada/incomoda muito mais/ uma mulher gorda/é uma mulher suja/uma mulher suja/incomoda incomoda muito mais” (p. 16).


Todas essas questões estão intrinsecamente relacionadas entre si, e mais: giram em torno do machismo, cultura enraizada em nossa sociedade, que estabelece a subalternidade da mulher em relação ao homem. É do machismo que vem o padrão de beleza que a sociedade nos impõe, notadamente, através da mídia e é desse padrão imposto que vem a gordofobia, já que as mulheres entendem que, para que haja aceitação, devem estar o mais perto possível da aparência cultivada pelas revistas – que, diga-se de passagem, não se preocupam em moderar no uso do photoshop. Nos versos de Mulher de regime, por exemplo, poema que compõe a segunda seção do livro, seguramente é contemplada grande parte das mulheres contemporâneas: “aí um dia minha mãe falou: regina/regina você precisa fazer um regime você está enorme/você fica aí na cama comendo biscoito/e usando essa roupa horrível que parece um saco de batatas [...] daí eu comecei regime porque me sentia mal [...] troquei os biscoitos por brócolis queijo cottage e aipo [...] eu me sinto tão mal por tudo que comi esse tempo todo/tão mal e tem tanta gente passando fome no mundo” (p.41).


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Uma vez sendo machismo o centro dos comportamentos já mencionados, podemos dizer que o feminismo é o centro do livro de Angélica. Problemas básicos, enfrentados cotidianamente pelas mulheres, são abordados em absolutamente todas as páginas. Abrindo a segunda seção, o poema Mulher de Vermelho retrata a opressão dos assédios verbais e não verbais: “essa mulher de vermelho/alguma coisa ela quer/pra ter posto esse vestido/não pode ser apenas/uma escolha casual [...] mas ela escolheu vermelho/e ela escolheu vestido/e ela é uma mulher/então com base nesses fatos/eu já posso afirmar/que conheço seu desejo/caro watson, elementar:/o que ela quer sou euzinho” (p. 31). É absurdo que tenhamos que, em pleno século XXI, pedir consentimento para nos vestirmos como quisermos e bem entendermos. É catastrófico que ainda haja, num estupro, a culpabilização da vítima – e, pior, que sigamos cultivando e perpetuando esses valores e comportamentos, ao ensinarmos as mulheres a não serem estupradas em vez de os homens a não estuprar.


Ao longo do livro, muitas são as referências. Talvez a mais transgressora seja trazer Amélia, personagem do samba “Ai, que saudades da Amélia”, de Mário Lago e Ataulfo Alves, e fazê-la casada com a Mulher Barbada, personagem circense. No poema homônimo ao livro, Angélica evoca simbólicas personalidades femininas: “o útero de frida kahlo/o útero de golda meir/o útero de maria quitéria/o útero de alejandra pizanirk/o útero de hillary clinton/[o útero de diadorim]” (p. 60). A relação entre esses seis úteros, essas seis personalidades e a mulher contemporânea é muito significativa e abre espaço para uma enorme identificação por parte da leitora com a literatura de Angélica Freitas – que têm esses úteros em comum se não uma força inabalável e incansável luta pela liberdade feminina? É importante que saibamos: nos úteros de todas nós cabe um mundo.


por Ludmila Rodrigues

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