O contemporâneo em "Minha mãe morrendo", de Valêncio Xavier
A literatura possui diversos momentos de produção, distintos entre si, que determinam o tipo de texto literário que está sendo produzido em determinada época. Segundo a periodização convencionalmente utilizada, através de uma série de semelhanças entre os textos – semelhanças como a utilização de uma determinada variante da língua, ou até o uso de um número mais ou menos preestabelecido de assuntos tratáveis – se estabelecem os critérios que o definem como pertencente a este ou àquele momento literário.
Na literatura contemporânea, boa parte destes critérios diz respeito a posicionamentos como o questionamento a um ideal preestabelecido – seja ele social ou literário –, a utilização de temas tomados, até o momento, como moralmente intratáveis, a união entre diferentes linguagens artísticas para a produção de um determinado objeto artístico, dentre outros, geralmente ligados à tentativa de atualização e aprimoramento das possibilidades de criação dentro da literatura.
Todas estas características estão presentes na obra de Valêncio Xavier, que possui uma das produções mais ousadas e instigantes do Brasil, do século XXI, principalmente no que diz respeito à atualização da maneira com a qual é usada a linguagem literária.
Valêncio Xavier nasceu em 1933, na cidade de São Paulo e desde muito cedo, sem perceber, criou toda a estrutura para esse que seria um dos traços mais significativos de sua obra. Com o desejo e o prazer enorme que sentia pela imagem, e muito particularmente pelo cinema, o autor acabou montando um acervo de imagens de jornal, de fotos de família, anúncios e diversas outras imagens que seriam, posteriormente, utilizadas em suas obras criando significações e múltiplas possibilidades interpretativas dentro de seus textos. O que torna isso tão interessante é o fato de que o autor constrói essas múltiplas interpretações através de um artifício não literário, ou seja, toma outra linguagem, e mais que isso, outra técnica de produção artística para conferir significação ao texto literário.
Esta técnica é usada pelo autor de maneira bastante distinta da utilizada na década de 50, com os poetas concretos, já que o foco de atualização, em Xavier, deixa de ser o signo linguístico e passa à forma através da qual se estrutura a organização e a exposição das linguagens em contato. A parte que corresponde à linguagem literária não sofre necessariamente uma ruptura, mas sim a maneira como essa comunica.
Esse jogo fica bastante claro no livro "Minha mãe morrendo", de 2001, que é organizado através da utilização alternada entre imagem e poema a cada página, possibilitando, no mínimo, três tipos de narrativa: uma montada pela palavra – sendo que esta narrativa é em verso, o que amplia ainda mais as interpretações do texto –, outra pela imagem e ainda uma terceira, estruturada pela leitura conjunta das duas outras.
Além de tudo isso, nessa obra, existe a ousadia do autor que se manifesta nos temas abordados e em certas imagens escolhidas, sendo, respectivamente, o desejo sexual entre o filho e sua mãe, além da forma como este sentimento se relaciona com um ideal de pureza e de castidade e a utilização de imagens, como a última desta obra, que questionam a veracidade da informação transmitida pela linguagem visual, possibilitando a interpretação de que as fotos, no livro, podem servir como uma espécie de pista falsa para algo, ou ainda, ressaltar o caráter ficcional daquele relato biográfico.
A escolha dos temas, a utilização de linguagens distintas na mesma produção e, principalmente, o caráter metalinguístico tornam a obra deste autor quase prototípica do conceito de arte contemporânea e, ao mesmo tempo, se distancia de muitas produções do mesmo período, que não trabalham com o contato entre linguagens, por exemplo. No entanto, o termo Contemporâneo tem, na obra do autor, e principalmente na obra aqui citada, um de seus traços mais marcantes, contemplado: a comunicação e a atualização, não só da linguagem utilizada, como já dito, mas do cenário literário passado, que serve de ponto de partida para a produção artística e, muito particularmente, para sua substituição e revigoramento.
por Filipe Castro
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios.tradução Vinícios Nicastro. Chapecó, SC: Argos, 2009.
XAVIER, Valêncio. Minha mãe morrendo e o menino mentido. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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