Até o dia em que o cão morreu


"(...) É tudo a mesma coisa. Isolado ou mergulhado numa multidão, no trânsito, no trabalho, a solidão é sempre a mesma, com exceção daquelas poucas, raras pessoas em cuja presença a solidão some, mesmo que não seja o tempo todo." (Marcela, p. 98)



Até o dia em que o cão morreu: aflição, ansiedade, dias, rotina, cidade, prédios, decisões e o tempo. A vida escorre pelas mãos e a rotina vai consumindo nossos poros, somos jovens, somos esse tempo jovem, esse desejo, esse caos, essa veia que pulsa, essa vida que pesa, essa pressa. O romance Até o dia que o cão morreu representa essa voz e cada página se desmancha orgânica e representa esse corpo jogado em um tempo desconhecido, em um novo refratado por milhões de informações e obrigações que atravessam os nossos desejos. Este livro, escrito em 2003, por Daniel Galera, publicado pela Livros do mal, sem dúvidas é uma obra que marca a trajetória da contemporaneidade: um sentimento de dúvida, angústia e uma rotina para arrastar (ou que nos arrasta?).


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O enredo conta a história de um homem, formado em letras, que passa o tempo bebendo, em andanças pelas ruas, cigarros e a incerteza do que fazer com as próximas horas que seguem. Meio a isso, surgem, na sua porta, um cachorro e uma modelo chamada Marcela. Algo recheia esses dias até então despretensiosos de anseios, mas, mesmo assim, a tribulação ainda se desenha tenaz. Afirmando essa ideia, o discurso dessa personagem sem nome plasma a imagem descrita acima (após a chegada de Marcela e do cachorro):




Meu objetivo, ultimamente, era me preocupar apenas com as coisas que realmente importam, e não são muitas. Pouco mais do que cigarros, uma garrafa de cachaça ou vodka no congelador, uma foda de vez em quando, um lugar quieto de onde fosse possível observar as coisas de cima. Naquela madrugada, meditando, cheguei à conclusão de que seria legal ter aquele cachorro em casa. (p.13)



 galera


Fazendo um salto temporal, não podemos deixar de pensar no absurdo de Camus, mais precisamente na indiferença; sensação catártica elaborada pela obra do autor, no que tange a percepção da realidade e a consciência como carga, o que fazer depois disso? Desse modo, Mersault, personagem protagonista do livro O Estrangeiro, se aproxima dessa leitura, pois a personagem elaborada por Galera plasma o absurdo de existir na cidade e a indiferença dos dias, da existência e dessa vida que sempre nos ensinou a viver para o futuro. Corroborando a essa concepção, João Gilberto Noll, escritor, afirma que a personagem protagonista do livro de Galera:




Quase que em estado de natureza, em diáspora com o mundo administrado pela burocracia das horas, dos empregos fixos, seres que se sentem mais à vontade com os bichos-franciscanas criaturas sem qualquer resquício do sagrado. A morte ronda. Nada parece fazer muita diferença. (NOLL, 2003)



No decorrer da narrativa é notório que o autor pensou, de maneira cuidadosa, a cronotopia (relação espaço-tempo) - termo desenvolvido por Bakhtin -, e o círculo da personagem, pois o final do enredo solidifica a elaboração estética de uma personagem que foi pensada desde o início até o final, levando em conta a sua complexidade de características. O fechamento estético, tanto em Camus, como em Galera, devido a sua elaboração estética, compõem um discurso sobre a contemporaneidade, ainda que sejam obras escritas em espaço-tempo diferentes, ou seja, depois de entender o mito de sísifo como metáfora da vida, o que fazer com essa consciência? Tal questionamento, sem dúvidas, continuará permeando o discurso da literatura do século XXI, posta a grande necessidade de pensar a existência nos seus mais diversos melindres.


por Lucas Silva e Priscila Machado


Referências:

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 4a. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1979].

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2005.

CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro : Record, 1977.

GALERA, Daniel. Até o dia em que o cão morreu. São Paulo: Ed Companhia da letras, 2003.

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